quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Falcon no Cantareira


* Por Marcelo Sguassábia

- É ele, eu tenho certeza. Tem aqui as iniciais do meu nome, que o saudoso Tio Zezo marcou a ponta de faca nas costas do boneco. Ter um Falcon, naquele tempo, era o sonho de consumo da molecada. Com essa marquinha aqui, se me roubassem na escola eu poderia provar que era meu. Velho Tio Zezo, era uma criança junto com a gente.

- Tá me zoando, meu. Não pode ser o mesmo boneco.

- Te juro. Olha, tá me vindo a cena toda na cabeça. Eu estava ali, perto daquele pneu de trator. O Rodriguinho, pentelho como sempre, me deu um empurrão, querendo me jogar pra dentro d'água. Eu consegui segurar o tranco, mas o Falcon acabou caindo e submergiu pra nunca mais. Quer dizer, até hoje, né. Eu tinha ganho de presente no Dia das Crianças, e o mergulho fatídico foi uns dois meses depois, num domingo quente perto do Natal. Meu pai estava pescando com o Motorádio do carro ligado, e me lembro daquele jingle tocando: "Quero ver você não chorar, não olhar pra trás..."

- Por essa época vocês tinham um Corcel II branco, né?

- Isso, e no painel tinha um imã, escrito "Papai não corra, não morra". Era começo dos 80, mas o imãzinho era dos 70, quando os carros eram inteiros de ferro. Se fosse nos carros de hoje, o imã não ia parar no painel. Acho que seria mais fácil eu ganhar 100 vezes na Megasena do que reencontrar meu amiguinho barbudo.

- Concordo. Inacreditável, e olha que o pescador nem era você.Olhando toda essa terra rachada, a impressão que dá é que abriram o ralo da represa. Achar carro, barco, sofá submerso, vá lá... Mas um bonequinho desse tamanho é demais. O que te fez pensar que ele estaria aqui, no mesmo lugar?

- Meu sexto sentido arqueológico, talvez. Além disso, estamos falando de um tanque, onde as coisas jogadas nele não podem ir pra outro lugar.

- O triste é ter que tirar a poeira dele, quando o mais lógico seria colocá-lo pra secar... Falcon da Estrela: o resgate. Que saga, heim?

- Nossa, olha lá. Um Aquaplay.

- Onde?

- Melhor dizendo, acho que tá mais pra Terraplay...

* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).




2 comentários:

  1. Conto muito bom. Fazia tempo que eu não lia contos aqui no Literário.

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  2. Por um descuido não li o titulo, e do meio para o fim, fiquei imaginando quantas revelações a seca não faria. E não é que foram mesmo submergidos? Ainda que na tragédia, bom rever os antigos brinquedos.

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