quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A obsessão pelo tempo


O escritor, mesmo que sequer desconfie, é obcecado pelo tempo. Faz dele, por exemplo – caso se trate de ficcionista – pano de fundo para seus tantos enredos. “Viaja”, nas incomparavelmente velozes asas da fantasia, ora a um passado – remotíssimo, anterior, mesmo, à origem de bilhões de espécies, animais e vegetais, quiçá da vida e até da formação do Planeta que nos nutre e acolhe – ora a um futuro absurdamente distante, que certamente jamais testemunhará para saber se será ou não minimamente parecido como o que imagina. Adianta-se, neste caso, dezenas de milênios ou mais à época em que vive. E ainda assim consegue a façanha de conferir alguma verossimilhança às histórias que cria, para que não pareçam totalmente absurdas aos leitores, embora não deixem de ser surreais. Brinca, pois, com o tempo, ao seu bel prazer, valendo-se do recurso da imaginação,

“E o presente, não conta para o escritor?”, perguntarão alguns. Conta, e muito! Tanto que a maioria situa nele suas histórias. Se você quiser, por exemplo, conhecer como viviam nossos antepassados, como falavam, de que forma se vestiam, por quais meios se locomoviam etc., encontrará informações sólidas e confiáveis não propriamente nos textos dos historiadores, mas nos enredos dos romances, contos e novelas que tenham como pano de fundo a época que queira conhecer, testemunhados por contemporâneos que os relataram em suas criações literárias. Cito e reitero que o escritor é, sobretudo, testemunha do tempo em que vive. E, salvo exceções (que existem em praticamente tudo) tende a ser sumamente confiável.

Na abordagem do futuro, há duas grandes vertentes que se opõem uma à outra. De um lado, estão os utopistas, que crêem que a humanidade irá superar suas contradições atuais (que parecem insuperáveis) e instituir sociedades ideais, harmoniosas e justas, das quais a violência, o egoísmo e tudo o que transforma a vida da maioria num inferno, serão extirpados e substituídos pela solidariedade, justiça, serenidade e, sobretudo, universal e irrestrito amor. No outro extremo estão os distópicos, sumamente pessimistas, que acreditam (e não sem razão, óbvio) que as coisas só irão piorar, e muito. Que o Planeta, superpovoado, poluído e depredado será a mais perversa das selvas e que o homem do futuro retroagirá á irracionalidade e barbárie e cultivará seus piores e irrefreáveis instintos de fera, mesmo que evolua tecnologicamente.

A escolha do tipo de sociedade em que nossos descendentes irão viver está tanto em nossas mãos, quanto nas das gerações que nos sucederem. Secretamente, acalento utopias, posto que estas, não raro, me pareçam absurdas e irrealizáveis diante do que testemunho no dia a dia. Ainda assim... Algo, em meu íntimo, teima em acreditar na regeneração humana. Ou seja, na vitória da razão, no confronto que trava, sem cessar, com os instintos de fera que temos. Mas a sociedade ideal que acalento não abre nenhuma brecha para que os males que envenenam nossa alma e arruínam nosso tempo sobrevivam.              

E qual é a utopia que proponho? Afinal, existem muitas, propostas por muitos e muitos escritores, ao longo dos últimos quatro a cinco séculos. Porque a humanidade, neste curto espaço de civilização, definido por pouco mais de sete mil anos, já teve várias e várias e várias e nenhuma delas prosperou ou chegou sequer a ser tentada. Analisarei algumas para, por exclusão, chegar à que julgo preencher os requisitos para se tornar ideal perene da humanidade. Claro que não me julgo dono da verdade (que não sou) e que, a rigor, não tem proprietários. Aliás, trata-se de um conceito sumamente ambíguo e raramente consensual. Para analisar algumas utopias, recorrerei às luzes do escritor Mário Donato, mais especificamente, a um longo e brilhante ensaio que publicou, em abril de 1983, no suplemento "Leitura", do Diário Oficial do Estado do Estado de São Paulo. Seu título é: "Utopia e o sonho azul da Colônia Cecília". Primeiro, o autor traz a definição usual da palavra. Pergunta: "Uma utopia? Que é uma utopia no consenso atual?". E responde: "Algo de paradisíaco e de inefável. Tão bom, que se faz inexequível".

Karl Manheim, um dos pioneiros da Sociologia, define o termo de outra forma: "Utopias são idéias inspiradoras das classes em rebelião e ascensão, em oposição às ideologias que racionalizam e estratificam o pensamento das classes dominantes". Não concordo com essa colocação. Ela limita o termo apenas ao campo ideológico. Voltando a Mário Donato, questiono: haveria alguma tarefa, por mais elevada que seja, impossível do ser humano realizar? Bem, depende. Todavia, pondero: para quem conquistou a natureza, dominou os segredos do átomo e operou tantas e tamanhas maravilhas, em escassos e irrisórios sete mil anos de civilização, a impossibilidade é relativa. Talvez seja somente temporária, quem sabe.

Mário Donato observa: "Ora, as utopias inventadas pelos homens desde que o mundo é mundo não correspondem ao ideal dos que entendem erradamente o anarquismo. Com exceção do Jardim do Éden, onde viveram Adão e Eva em nudez, sem pecado e sem trabalhar e nem sofrer (o que, aliás, durou pouco), todas as utopias foram sempre rigorosamente organizadas, pois os seus criadores, criticando as sociedades em que viviam, elaboraram outras, em que o principal era a ordem, a ausência do imprevisto, o interesse coletivo sobrepujando o individual. Até a Canaã dos hebreus, onde os escritores bíblicos dizem que manavam leite e mel, tinha um Deus vigilante e ciumento, leis, sacerdotes, chefes, trabalhadores e soldados. Não era uma anarquia, embora tenha sido apontada como símbolo de um paraíso na Terra".

A ordem, sem dúvida, é importante, diria indispensável, para perfeito ordenamento social e progresso dos povos. Mas não é esta, propriamente. a minha utopia. Ela é muito mais complexa (e completa) A predominância do interesse coletivo sobre o individual, desde que não imposto e desde que aceito consensualmente, é, de fato, ideal elevado e desejável. Mário Donato, no seu retrospecto dos ideais utópicos mais conhecidos, informa. "O pai das utopias foi Platão, que viveu entre o IV e o V século antes de Cristo. Era um impenitente criador de utopias, o que dá a medida do seu inconformismo. Uma delas, a da Atlântida, até hoje é discutida a sério: existiu mesmo ou não?",

Os ideais platônicos podem ter, e de fato têm, grande interesse na história do pensamento humano. Sua República, porém, foi tentada, em várias épocas e lugares, e fracassou. Até hoje são os aristocratas, ou seus prepostos, que conduzem os destinos de vários Estados. Todavia foram e são impotentes, ou indolentes, ou incompetentes para pôr fim às desigualdades econômicas e sociais, à exploração do homem pelo homem e a todas as mazelas que caracterizam nosso tempo. Não é esta, evidentemente, a minha utopia. O assunto é bastante extenso complexo e requer diversas considerações, impossíveis de serem tratadas em um único texto. Voltarei, portanto, a abordá-lo, com mais vagar, na sequência.


Boa leitura


O Edito

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