segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Álbum de figurinhas


* Por Adair Dittrich

Ainda flanando o pensamento, ainda com a mente coalhada de reflexos do futebol e das lembranças das primeiras copas do mundo, outras histórias vão chegando. Como eu as vi, como eu as senti, como eu as aplaudi, como chorei de desilusão e como chorei de emoção.

Volto ao mais antigo tempo de que me lembro quando a copa começou a ser ouvida pelas ondas do rádio. Com locutores esportivos contando como estavam os jogos.

Um tanto quanto obnubilada é a lembrança da copa de mil e novecentos e trinta e oito. Mas, lembro-me bem da chegada do rádio em nossa casa. De sua instalação. Aqueles mastros de madeira pregados no alto mais alto da cumeeira da casa tentando invadir os céus e alcançar as nuvens com fios que se estendiam entre eles e desciam para dentro da casa e se articulavam com aquele novo móvel ali instalado, aquele móvel que falava. Não lembro se me explicaram que a toda aquela parafernália dava-se o nome de antena. E em pouco tempo a nossa pequena vila estaria com os céus coalhados por elas.

Mas do que eu me lembro, e muito, era que eu procurava, até atrás da parede, no quarto contíguo onde estava o rádio, por um homem e por uma mulher que não paravam de falar e de cantar e tocar instrumentos musicais…

Sei, porém, que quando a terceira copa chegou, as coisas lá em casa estavam bem mais animadas com o Rádio contando como estavam decorrendo os jogos. Não sei se era voz direta… creio que não. Eram notícias que chegavam pelo telégrafo e eram retransmitidas. Lembro que os locutores e as locutoras do rádio tinham uma voz vibrante, nítida, empolgante. Nem se compara com estas vozes medíocres que hoje se ouve pelas emissoras de tevês. Esquecem-se que precisamos ouvir bem o que se fala. Esquecem-se que existem clínicas de Fonoaudiologia para aperfeiçoamento da voz. Mas não é disto que eu quero falar agora.

Toda a sessão de cinema também tinha como abertura um cine-jornal que entre as demais notícias do Brasil e do mundo mostrava também o que acontecia nos campos de futebol. E víamos então o jogo em movimento. A dança, o balé em busca de uma bola que pelo rádio se via apenas pela imaginação. E como se via pela imaginação, pela narração rápida, completa e total.

E ainda tínhamos os jornais e as revistas que chegavam pelo trem, em Marcílio Dias, e que vinham recheadas com fotos e notícias sobre o chamado esporte bretão, o chamado esporte das multidões.

Meus irmãos Avany e Aldo sempre a par das conquistas, dos feitos, dos gols e dos dribles dos nossos grandes nomes da época, tentavam confeccionar, a duras penas, um álbum dos jogadores.

Não era um álbum de figurinhas, assim fácil, como esses que mais tarde apareceram e que é só comprar, procurar e montar, não.

As figuras, as fotos eram, com tesoura, recortadas dos jornais e das revistas e coladas depois em cadernos com cola de farinha de trigo por eles fabricada em fogão de lenha.

Morávamos na mesma casa com Nono Pedro e Nona Tereza Gobbi. E, na hora em que o trem chegava todo mundo descia até o Restaurante ao lado da estação do trem que era para ajudar e depois reunir-se à mesa para as refeições.

Depois da Copa de trinta e oito recebemos a visita de um primo de minha mãe a quem chamávamos de tio. Primo almofadinha que morava em São Paulo onde aprendera as artes e os ofícios de Confeitaria. E abominava o futebol.

Meus irmãos achavam que já tinham recortado dos jornais e revistas todas as figuras que lhes interessavam para montar um grande álbum com os jogadores. E as deixaram coladas nas folhas dos cadernos espalhadas pelas mesas da cozinha, da copa e da sala de jantar para que a cola secasse. E desceram para o restaurante porque era a hora do trem chegar. Ofício acabado na azáfama da hora voltaram para casa com a intenção de montar, folha por folha, o álbum.

E o que encontraram?

Mesas vazias.

Procuraram no lixo, nos fundos da casa, nos ranchos. Procuraram nas cinzas e nas cinzas nem resquícios encontraram.

Foram falar com Nona Tereza que de nada sabia e até ajudou a procurar. Quem sabe o vento as levara. E nada.

No fim, até a Nona chorava com eles porque ela sabia o quanto havia custado para conseguir e juntar e classificar todas as figuras para aquela coleção. Coleção classificada por times e por seleções de países.

Ela sabia que o “foguino”, que era o Aldo, durante todas as férias trabalhara de carregador de malas para os passageiros dos trens a fim de arranjar o dinheiro para a compra dos jornais e das revistas. E agora tudo desandara. Só a frustração permanecia.

E só poderia haver um culpado. Que não era o mordomo. Que deveria ser o primo-confeiteiro. Que, claro, a tudo negou.

O primo almofadinha tinha vindo para ficar mais tempo em Marcílio Dias e, talvez, até colocar sua arte a serviço do restaurante.

Mas, no dia seguinte, da janela de um vagão de primeira classe do trem das onze que seguia para Curitiba, o primo acenava dando adeus a todos sem ter antes sequer se despedido da família.

Só a Nona Tereza sabia o porquê.


* Médica

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