segunda-feira, 20 de outubro de 2014

A história da opinião pública brasileira


* Por Raul Longo

VII Parte – As Cruzadas Sertanejas

A multiplicação da violência social produzida pelo abandono e descaso ao povo é um axioma universal. Das estepes russas ao velho oeste dos Estados Unidos, por todo o mundo a violência social que ainda há pouco também assombrou o Brasil é um problema universal e em nosso país hoje se agudiza no estado de São Paulo onde, em 2006, o crime organizado tomou de assalto uma das maiores megalópoles do mundo.

O sequestro de São Paulo, ordenado pelo Primeiro Comando da Capital de dentro de um presídio estadual de segurança máxima, foi um paroxismo apenas imaginável por roteiristas de Histórias em Quadrinhos. São Paulo se tornou uma Gotham City sem Batman.

Mas o absurdo maior e mais inexplicável foi a posterior reeleição do governador daquele estado ao mesmo cargo. Apesar de não ser um problema exclusivo à população paulista, enquanto populações de demais unidades da federação vivenciam paulatina redução na insegurança de suas cidades, acintosamente o governador de São Paulo aproximou-se ao crime organizado, inclusive apoiando candidatura para deputado federal de um líder do PCC, o famigerado Primeiro Comando da Capital, atualmente a maior organização criminosa do Brasil, substituta do extinto Comando Vermelho do Rio de Janeiro.

Denúncias internacionais sobre envolvimento de corrupção com empreiteiras multinacionais nas obras do deficitário sistema de transporte metroviário; ou o descalabro do esgotamento dos reservatórios de água instalados entre uma das maiores bacias hidrográficas do mundo -- por mera incompetência administrativa conforme conclusões de técnicos do setor na ONU -- somam-se a continuidade das ações do PCC por todo o estado; mas nada disso contem os índices de intenções de voto dos paulistas em Geraldo Alckmin e, a menos que as pesquisas de Opinião Pública daquele estado também sejam fraudadas, ali a população fará por merecer ainda mais quatro anos de um desastroso governo.

Mas todo o Brasil foi uma grande São Paulo nas décadas em se transcorreram os governos da chamada Velha República, embora a violência e insegurança não fosse gerada por organizações criminosas muitas vezes financiadas por políticos que do tráfico de drogas, do contrabando e da prostituição retiram os recursos de financiamento de suas milionárias campanhas eleitorais. Os coronéis que mantinham a política da Velha República não usavam desse tipo de recurso e para garantir seus votos de cabresto precisavam apenas dos serviços de pistoleiros e jagunços, a bem baixo custo.

Muitas foram as reações populares aos tão comuns abusos de poder gerados por aquele sistema de manutenção dos poderes regionais dos coronéis latifundiários, e todas elas foram respondidas pela mesma truculência, como a empregada em janeiro de 2012 contra a comunidade de Pinheirinho, em São José dos Campos, por aquele mesmo Geraldo Alckmin.

Naquele ano ainda recente, Alckmin obteve a aliança do judiciário paulista e garantiu reintegração de pose da área ocupada por brasileiros pobres e reclamada como propriedade privada por Naji Robert Nahas, conhecido especulador financeiro libanês que, em 1989, provocou a quebra da Bolsa do Rio de Janeiro.

A Bolsa do Rio de Janeiro não mais se recuperou, mas em 25 de março de 2014 a Presidente Dilma autorizou a construção de 1.461 residências para o assentamento dos seis mil sobreviventes do massacre do Pinheirinho, entre crianças, mulheres, jovens e adultos baleados, bombardeados e pisoteados pelos cavalos da polícia do hoje candidato à reeleição ao governo de São Paulo.

A ação de Alckmin contra a comunidade do Pinheirinho indignou a ONU e a OEA, mas na história da República não foi o único crime praticado pelas elites contra o povo brasileiro. Com o fim do Império a marginalização da imensa maioria da população promoveu muitos movimentos desesperados, reprimidos com a mais crua das violências já cometidas pelas repúblicas latino-americanas.

Seguindo o exemplo da Revolta dos Muckers ocorrida ainda no Império, muitos desses movimentos populares se aparentavam de motivação religiosa, mas a maioria provinha de uma profunda indignação e desespero social.

Naquele caso dos colonos alemães do Ferrabraz, região periférica do município de São Leopoldo no Rio Grande do Sul, espiritualmente liderados por Jacobina Mauer e ironizados com a palavra alemã para santarrões, “muckers”; a seriedade das reivindicações daqueles marginalizados e explorados por seus próprios patrícios, só foi percebida quando as visões messiânicas de Jacobina estimularam respostas violentas às humilhações a que seus seguidores eram submetidos pelos mais ricos.. As intolerâncias religiosas alimentaram rancores em ambos os lados da questão, mas não foram a real origem do conflito que só findou depois de muitas mortes nos embates dos emigrantes alemães com o exército imperial brasileiro .

Sociólogos mais atentos compreendem que quando retiradas as possibilidades de esperança nas naturais condições humanas, só resta a crença no sobre-humano como meio de organização das massas. Os deuses são criações do desespero, não da confiança do ser humano em si mesmo e a partir do momento em que um vetor de fé, um carisma religioso, reunir os desesperados em torno de uma crença, tornar-se-á capaz de conduzir multidões aos atos mais estoicos, seja em busca da redenção da realidade que aprisiona, seja no sentido de encontrar essa redenção através da destruição da própria vida.

Ainda no Império, em 1878, o fanático João Ferreira induziu um grupo do sertão pernambucano ao massacre de 87 pessoas prometendo que se lavados por sangue de inocentes os monólitos de Serra Formosa, no município de São João Belmonte, se transformariam em palácio onde se daria a ressurreição de Dom Sebastião, rei de Portugal desaparecido no século XVI em Alcácer Quibir, África, durante uma batalha das Cruzadas.

Esse terrível evento foi magistralmente relatado no “Romance d’A Pedra do Reino” de Ariano Suassuna, mas nem só os isolados do mundo são levados à tamanha inconsequência, tampouco se trata de exclusividade de miseráveis e flagelados, sem quaisquer condições de aquisição de conhecimentos que promovam a evolução humana. Vamos encontrar esse mesmo tipo de comportamento inclusive entre a classe média, como naqueles estadunidenses que cometeram suicídio coletivo na Guiana em 1978, induzidos por Jim Jones, missionário da seita evangélica Templo dos Povos.

A despeito de ser o berço da psicologia e reunir as mais importantes linhas e escolas filosóficas da era moderna, há ainda menos de um século a Alemanha se tornou palco de uma das maiores hecatombes da humanidade, provocada pela indução ao fanatismo a um único homem. Mas tampouco a Alemanha é exemplo isolado de que o condicionamento religioso, ético ou político, possa levar toda uma nação, todo um povo, à autodestruição. Agora mesmo, exatamente enquanto  o Brasil obtêm reconhecimento internacional pela vertiginosa evolução do país em todos os níveis e setores, inclusive se retirando do mapa mundial da fome pela primeira vez em toda sua história; a indução e condicionamento pelos meios de massificação da Opinião Pública nos ameaça de retorno aos mais negros períodos de nossa história.

O fundamentalismo religioso a serviço de grandes empreendimentos financeiros e do capitalismo especulativo internacional é a maior ameaça a que já fomos expostos desde as caravelas de Pedro Álvares de Cabral. Para dimensionar o alarmante significado desse risco é preciso recuperar memória do fanatismo produzido pelo abandono e descaso aos sertanejos católicos, comparando-o aos fundamentalismos evangélicos das modernas sociedades urbanas.

Além dos Muckers, dos fanáticos da Pedra Bonita e dos seguidores do também sebastianista Antônio Conselheiro da Guerra de Canudos de 1896/97, o messianismo não é um anacronismo do século XIX e permaneceu pelo século XX manifestando-se em acontecimentos muito significativos como o da Guerra do Contestado de Santa Catarina, que se estendeu de 1912 a 1916, com liderança messiânica exercida pelo monge João Maria.

Outro importante conflito religioso se deu na região do Cariri do Ceará que pelas condições climáticas favoráveis às práticas agrícolas se difere totalmente do Cariri da Paraíba assolado pela esterilidade da caatinga, conforme relatado na popular música “Último Pau de Arara” do compositor pernambucano Venâncio: “enquanto minha vaquinha puder com o couro e o osso, foi ficando por aqui... Só deixo o meu Cariri no último pau de arara”.

Nascido na cidade do Crato, Cícero Romão Batista, filho de pequeno proprietário rural passou dificuldades após a morte do pai, mas conseguiu ordenar-se padre e se estabeleceu em Juazeiro, então um pequeno povoado da região. A dedicação pastoral ao povo ali esquecido logo granjeou grande estima popular e apesar de sua austeridade contra o álcool e a prostituição, a influência do Padre Cícero ultrapassou as fronteiras de todos os estados nordestinos.

Em 1914 as oligarquias cearenses se uniram contra as interferências do governo federal e através da popularidade do Padre Cícero e obtiveram o apoio dos sertanejos. Apoio decisivo para a derrota das forças federais enviadas para conter o poder abusivo dos coronéis.

O exército de Hermes da Fonseca, aquele mesmo que em 1910 desonrou-se faltando com a palavra a João Candido, o Almirante Negro da Revolta da Chibata; foi barrado pela trincheira de 9 kms. de extensão de valado aberto pelos romeiros convocados por Cícero. Franco Rabelo, o governador do Ceará, enviou mais soldados e um canhão, mas assim mesmo o exército foi vencido e os revoltosos atravessaram o estado até tomar a capital Fortaleza, onde depuseram o governo.

A revolta que ficou conhecida como Sedição de Juazeiro resultou em retaliações políticas ao Padre Cícero, mas, apesar de sua excomunhão pelo Vaticano, atualmente a mesma Igreja Católica explora os rendimentos da fé de milhares que de todo o nordeste anualmente seguem em romaria ao antigo povoado transformado em Meca do catolicismo sertanejo.

O paraibano José Lourenço era um dos beatos do Padre Cícero. Embora não tenha participado dos embates da Sedição de Juazeiro, a ele o padre entregou a responsabilidade sobre o sítio Baixa Dantas, arrendado como oferta de um fiel latifundiário da Paraíba. Transmitindo seus muitos conhecimentos de agricultura e medicina popular, o negro José Lourenço recebeu aos assassinos, ladrões e miseráveis enviados por Cícero, como a uma colônia de recuperação.

A prosperidade da comunidade despertou a inveja dos coronéis e devido às provocações de seus jagunços, em 1926 o Padre Cícero recomendou Lourenço a transferir seu povo para um vale esquecido entre montanhas, nas proximidades da Cidade do Crato. A ampla área de terra devoluta era o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto e ali se deu uma das maiores e mais covardes chacinas praticadas pelas forças armadas do Brasil contra o próprio povo brasileiro.

No Caldeirão, Lourenço organizou uma sociedade intuitivamente socialista e todos os frutos do trabalho comunitário eram divididos igualitariamente. O arrecadado com a venda do excedente se empregava na aquisição de remédios e querosene para os lampiões, tudo em divisão comunal.

Os sertanejos do Caldeirão erigiram uma igreja e criaram um cemitério. Cada família tinha sua própria casa construída em sistema de mutirão comunitário e as crianças órfãs tornavam-se afilhadas do beato Lourenço que, apesar de analfabeto, se incumbia de educa-las transmitindo seus profundos conhecimentos de especialista em técnicas de lavoura e produção de remédios fitoterápicos.

O povoado chegou a ser composto de cerca de mil almas, quantia que aumentou bastante quando o Caldeirão se tornou refugio para os flagelados da grande seca de 1932. Mas o principal motivo dos sertanejos buscarem o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto foram as condições de trabalho que, apesar de não oferecer remuneração financeira, garantia muito melhor retribuição aos esforços de cada um, sem as humilhações sofridas nas fazendas dos coronéis.

Esse atrativo comprometeu a oferta de mão de obra barata por toda a região e os coronéis que usaram da coragem dos sertanejos para reagir ao exército durante a Sedição, dessa vez convocaram as armas da República para atacar os indefesos e desarmados lavradores daquela comunidade.

Acusados de comunistas apesar  de ignorantes do que fosse o comunismo, não puderam contar com o apoio da autoridade do Padre Cícero que falecera em 1934. Assim, no ano de 1937 os desarmados e pacíficos habitantes do Caldeirão foram covardemente massacrados pelos soldados do exército brasileiro e da Polícia Militar do estado do Ceará. Aqueles que conseguiram escapar fugindo pelos flancos das montanhas que circundavam o Caldeirão, foram bombardeados pelos aviões da  FAB – Forças Aéreas Brasileiras. Foi um dos primeiros se não o primeiro bombardeamento praticados por uma força aérea nacional contra o próprio povo. 

Embora os números oficiais registrem 400 mortes, denuncias à OEA – Organização dos Estados Americanos por crime de lesa-humidade também acusam o Brasil de ocultamento de mais de mil cadáveres enterrados em vala comum ainda não localizada. Mais de mil cadáveres de mulheres, crianças, anciãos, jovens...

Bem poucos brasileiros tem conhecimento dessa história, pois muitos dos militares que participaram daquele covarde massacre se incluíram entre os que anos depois, em 1964, ascenderam ao poder através do golpe militar contra a Opinião Pública brasileira. Mas essa já é outra história.

*Raul Longo é jornalista, escritor e poeta. Mora em Florianópolis e é colaborador do “Quem tem medo da democracia?”, onde mantém a coluna “Pouso Longo”.



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