quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Perfeita imperfeição

* Por Fernando Yanmar Narciso

A dita mãe perfeita aos olhos de um pode ser uma calhorda diplomada aos olhos de outro. Dizem que a mãe da cantora Sinnead O’Connor abusava sexualmente dela quando criança, mas nem isso a impediu de escrever uma música a homenageando quando morreu, Nothing Compares 2 You. A mãe que vigia, que educa, que passa valores aos filhos, os encaminha para tornarem-se bons adultos e ensinarem o mesmo aos seus filhos também parece a ideal para a maioria.
 
Assim como há quem considere aquela mãe branca, loira, de olhos azuis, sorridente e eternizada em sua jovialidade plastificada do comercial de All Day Cremosa o exemplo de como deveria ser a mãe perfeita. Devo tudo que sou hoje à minha mãezona. Sempre aqui do meu lado, aconselhando, educando, me repreendendo, tentando injetar algum juízo em minha cabeça mesmo aos 30 anos e com o cavanhaque a ponto de encostar-se ao umbigo. 

E olha que eu preciso muito dessas doses extras de juízo! Não é novidade para os que me conhecem e me lêem minha condição clínica, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, que tem sido o espinho no meu pé desde nenê. Quem me via quando criança e não conhecia de perto o problema só poderia julgar que meus pais eram os mais relapsos do planeta.
 
Quando nos mudamos para nossa primeira casa própria, num bairro, na década de 80, atrasado, as vizinhas acostumadas a serem as “rainhas do lar” e criar a vara de porquinhos que chamavam de filhos enquanto os maridos trabalhavam, para elas era quase uma aberração que minha mãe não apenas trabalhava fora, como sabia dirigir, tinha uma governanta e não ficava trancada dentro de casa como elas. 
Para aqueles provincianos, minha mãe era algo semelhante a quando os macacos acham aquela pedra no filme 2001: Uma Odisseia no Espaço. Como é que a Drª. espera que esse moleque aprenda a viver se ela nunca está em casa? Quem vai ensinar modos, respeito, o bom caminho do Senhor pra ele? Por isso ele ta crescendo esse bicho do mato, cadê a família quando ele precisa? Aquelas tiazonas de dentes cariados e vestido que mais parecia uma capa de botijão de gás simplesmente não se conformavam com a nossa modernidade.

Como ninguém sabia de minha condição, fui eternizado como o menino doido da rua, a quem praticamente todos desprezavam e desdenhavam. Perdi a conta de quantas vezes ouvi as mães proibindo suas filhas de até falar comigo, como se eu estivesse “com o diabo no corpo” ou coisa parecida. Crianças e adultos, eu e ela fomos incompreendidos por todos eles... Quer dizer, consegui a proeza de ser expulso de uma escola pela 1ª vez aos 4 anos!
 
Em determinado ponto da vida, nem mesmo a psicóloga/conselheira do colégio conseguia nos compreender. “Ele é assim em sala de aula porque reflete o ambiente hostil em casa de pais que vivem brigando...” Esse foi o diagnóstico que minha família recebeu quando eu tinha 10 anos, podem acreditar.
 
Como é de costume aos que não vivem de perto o problema, logo aparecem uns e outros para dar palpite em como “resolvê-lo”... Ah, o que esse menino precisa é de umas boas chineladas pra aprender a te respeitar! Umas chibatadas com o fio do ferro ou com uma vara bem verde o ensinam a falar fino! Amarra a canela dele ao pé da cama por um mês que ele sara! Deixa esse moleque comigo por uma semana que eu conserto ele! Como se eu fosse um liquidificador com defeito ou uma urna eletrônica..
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Como será que os filhos dessas mães estão hoje? Provavelmente casados, empregados e com uma ninhada de catarrentos há mais ou menos uma década ou mais. Suas bundas estão cobertas de hematomas e parecendo uma tábua de carne de tão calejadas, mas aprenderam a respeitar os pais da mesma forma como aprenderam com os pais deles lá no meio da roça. 

Provavelmente foram ensinados a confundir “respeito” com “medo” também, serviram ao serviço militar e assim cresceram idolatrando ícones do ultraconservadorismo retrógrado cristão. Talvez por terem apanhado relativamente pouco na infância meus pais não tenham insistido tanto na boa e velha disciplina do cinturão comigo, pois perceberam que não adiantaria nada encher de porrada um menino hiperativo que vive praticamente no mundo da lua.

Não que eu tenha atravessado a infância sem levar minha sorte de “justiçamentos”, mas não me recordo de ter sido mandado pra cama com o lombo parecendo um chiclete de tutti-frutti de tanto levar chinelada. As profissionais do cérebro que tive toda minha vida ensinaram mãe a extrair paciência de lugares que ela nem sabia que existiam, e com generosidade, controle, tolerância e um ou outro puxãozinho de orelha ela entregou ao mundo um cidadão mais ou menos exemplar. Como dizia uma antiga camiseta numa birosca de praia, “Todos querem ter uma mãe perfeita... Mas eu prefiro a minha”. 

* Escritor e designer gráfico. Contatos:
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Conheçam meu livro! 
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Um comentário:

  1. Agradecida pela homenagem, embora confusa. Certamente deve ter sido pela proximidade do meu aniversário. Muito obrigada, meu querido!

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