domingo, 17 de agosto de 2014

Não se esqueçam da baronesa

* Por Eduardo Murta

É da sacada da centésima janela, à esquerda, ao alto, que o leque rendado se apresenta. Movimentos ligeiros, ao calor daquele meio-dia. A mão pesada, redonda em gordura, irá confirmar. Justina é quem girava o pescoço, ponta a ponta, vigiando. Luneta a postos. Parava num detalhe. Praguejava as imperfeições. Cartazes indecentes, namoros nos cafés, a meninada brigando pela bola na rua coberta em poeira. Do mirante, estica o braço sem perder as cenas de vista. Alcança a sineta de bronze. Tocará três vezes, à espera da guarda palaciana. Para que enviem as tropas, corrijam o que tiver que ser corrigido e prendam quem tiver que ser preso.

Espia, à distância, a ação ligeira. Gente correndo, arrastada, apanhada a laço. Haveriam de compreender sua firmeza. Pelo bem da cidade. Entenderiam, assim, do primeiro ao último decreto que baixara. Começou com o veto aos biscoitos açucarados nos balcões do comércio. Impróprios à digestão, banquete de moscas, e um convite aos gases indiscretos. Abarrotou masmorras com donos de padarias e confeiteiros que deram de ombros à lei. Depois, proibiu minissaias e decotes generosos. Pernas de fora eram coisa pagã. E seios insinuantes se inscreviam na cota pessoal do demônio.

Em disfarce, inspecionava, ela própria, se as regras eram cumpridas à risca. Devorar pastéis regados a caldo de cana se convertera numa heresia a cardápios refinados. Tão grave quanto as rodadas de baralho nas madrugadas das tabernas. Crimes assim tinham rito sumário. Desfile enjaulado, feito bicho de circo, com jumentos tocando o cortejo. E a população que não faltasse à lista de presença, com nome cantado. Engalanada. Os homens em fraques. De terceira, mas em fraques. Mulheres em vestidões empolados, tecidos de quinta. E o ritual vigiado para a contagem regressiva. O condenado, crianças até, alçado ao vão da forca.

Justina calibrara a mão de ferro na convivência com o velho Barão de Salinas. Marido severo. Comandante de botas lustradas, veias grossas ao costado da mão e sem licença para os perdões. Sequer ao pai. Cheirando a uma ameaça, acabou trancafiado nos porões da Rua Direita. Fazia questão de lhe visitar todas as noites. Clareando sua face magra, barba já longa, ao rastilho do lampião. Miradas demoradas e silenciosas. Cumpriria o ritual, até aparecer morto, num dos quartos do palácio. Dizem que envenenado. Dizem, baixinho, obra de Justina.

Ela lhe ergueria um mausoléu na esquina de um dos corredores palacianos. Aquele em que granito e mármore nobres só aprofundavam o sentimento de geleiras esquecidas. A viúva, véu negro à cabeça, se dava a peregrinações semanais. Velas sempre gigantescas a lhe fazer companhia. A cara arredondada, papas à sobra, a minicoleção de verrugas ao rosto, nada se movia. Era um silêncio de confissão. Como o das noites em que se entregava, amante cativa, aos escravos do lugar. Recebidos com vinhos de safras especiais e queijos selecionados. Morreriam misteriosamente semanas à frente, exatamente como as putas que Justina condenara por crime de alta patente.
O confeiteiro Sinésio, agora, tem razões de sobra para ver tudo aquilo com escárnio. Leva à boca o biscoito açucarado, farelos à borda, contando ao filho a festa em que se transformara a região. Folias de reis e marujadas em pleno agosto. Mestre Gregório convocando a banda, às pressas, para reaprender, nota por nota, os dobrados banidos ao vento das miopias. A celebrar Justina à morte. Solitária, entre os cinco jardins que cercavam seu aposento.

O corpo seria exibido com pompas, dia seguinte. E a cidade decidira manter a liteira, a morta, tudo ali, no meio da praça. Definhando, à sorte do tempo. Madeira e estofados com o brasão da nobreza derretendo. A ossada se revelando ao ar rarefeito daquelas barrancas. Exposta como um monumento. Um dinossauro à memória do não. Do sim e do não.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S. Paulo e revista Veja. Foi um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.

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