quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Facilitando o trabalho do Big Brother

A crítica mais frequente que leio, e que ouço em conversas com intelectuais, a propósito do livro “1984”, de George Orwell, se refere à suposta impossibilidade de haver uma ditadura tão absoluta e onipresente como a de seu enredo. Cá para nós: será que é impossível mesmo? Essa é uma dúvida que sempre tive (e que ainda tenho), diante de tudo o que vejo e que leio, todos os dias, sobre acontecimentos mundo afora. Estou convicto, por uma série de razões, que a realidade tende a ser muito mais surpreendente e absurda do que a mais delirante fantasia, dessas que são frutos de exacerbada imaginação. Não me surpreenderia, pois, caso houvesse, algum dia e em algum lugar, uma ditadura pelo menos “parecida”, mesmo que remotamente, com a criada por Orwell em seu livro.

Aliás, a esse propósito, conversando, dia desses, com um amigo, este levantou uma tese que a princípio me pareceu digna de Kafka, tão absurda me soou. Depois, refletindo a respeito, quase me convenci que ela até fazia certo sentido. Meu interlocutor, com o qual travo, volta e meia, ácidos e duros confrontos – mas somente o de idéias, por pensarmos de forma diametralmente oposta no que diz respeito à realidade e que, mesmo assim, jamais permitimos que nossa amizade seja sequer levemente arranhada, quanto mais estremecida – disse que a ditadura “criada” por Orwell, no seu “1984”, já existe, embora não a percebamos.

“Mas como?!”, perguntei-lhe, já o contestando no simples tom de voz com que fiz a pergunta, simultaneamente exclamativa. Na hora, nem mesmo quis refutar com argumentos tamanho disparate. Deixei-o falar e expor sua tese. O amigo, cuja identidade jamais exporei publicamente (afinal, não sou “traíra”) identificou os três blocos em que o mundo foi dividido no livro do escritor inglês como sendo os Estados Unidos, a União Européia e a organização que congrega os países chamados de “emergentes”. Entre estes estão o Brasil, a Rússia, a China, a Índia e a África do Sul. Ou seja, ela congrega, praticamente, a metade da população mundial (só a China e a Índia, somadas, perfazem algo em torno de 2,5 bilhões de habitantes). Não disse, todavia, em qual das três facções estariam as sociedades nacionais mais pobres do Planeta, algumas paupérrimas, rotuladas, genericamente, como integrantes do Terceiro Mundo.

O tal amigo identificou a Oceania, de “1984”, como sendo os Estados Unidos (por aí, já dá para o leitor adivinhar qual é sua ideologia). Para ele, o Grande Irmão, o “Big Brother” é a opinião pública (ou seria mais correto dizer “opinião publicada”, face o crescente descrédito da imprensa no quesito “imparcialidade?). Argumentou com a vigilância constante e exaustiva exercida por serviços secretos norte-americanos, tipo CIA, que monitorariam todos nossos passos, notadamente pela internet, espionando, o tempo todo, nossas idéias, nossos relacionamentos e bisbilhotando até nossos e-mails (nem a presidente Dilma Roussef escapou desse inconveniente). Ora, ora, ora... Porém, exageros a parte, não há como negar que nossa privacidade é escandalosamente violada.

Aliás, talvez por questão de vaidade (sei lá!) nós facilitamos essa violação. “Documentamos”, através de fotografias e vídeos, com as câmeras de nossos celulares, praticamente cada passo do nosso dia a dia: onde vamos, com quem estamos, o que fazemos, como nos divertimos, o que comemos etc.etc.etc. Mas não mantemos essas imagens apenas para nós, como sugere o mínimo bom senso. Imediatamente as partilhamos com o mundo, nesta terra de ninguém que é a internet, postando-as nas várias (e viciantes) redes sociais. Bem, isso não caracteriza, nem de longe, a superditadura do livro de Orwell. Continuo considerando a idéia do meu amigo disparatada, surreal, um delírio absurdo. Mas que nosso comportamento narcisístico facilitaria o “trabalho” de um eventual “Big Brother”, caso, por uma desgraça imensa, ele emergisse em algum lugar e quisesse nos controlar, disso tenho pouquíssimas dúvidas.

As pessoas gostam de ser bisbilhotadas e, sobretudo, de bisbilhotar. Claro que me refiro “à regra” e não às exceções. Se não gostassem, os tais dos “reality shows” não fariam o sucesso que fazem (embora o interesse público por esses programas parece ter diminuído, pela falta de novidades). Sintomaticamente, a principal programação do tipo tem o nome, justamente, do “Grande Irmão” de Orwell. Ou seja, “Big Brother”.A privacidade, em vez de ser defendida com unhas e dentes, parece incomodar as pessoas. E isso ocorre não apenas no Brasil, mas em boa parte do mundo. Afinal, esses programas foram criados originalmente no Exterior e foram apenas copiados por aqui.

Portanto, entendo que, se alguém não apreciar o livro de George Orwell, o último argumento a que deve se apegar é o da alegada falta de verossimilhança do enredo. Fico cada vez mais convencido que a superditadura imaginada pelo escritor inglês é possível, sim. Só espero que não seja provável. E não factível. Para que ela não aconteça, o antídoto é a liberdade de pensamento. É pensar, pensar e pensar exaustivamente. E partilhar com o mundo o que pensarmos. As idéias, sim, é que devem ser divulgadas o tempo todo e em todos os espaços (entre os quais as redes sociais) e não esse descarado e narcisístico desnudamento atual da nossa privacidade.

Boa leitura.


O Editor

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Um comentário:

  1. Para usar uma palavra antiga, achei o editorial bem bacana. E para continuar no simplismo e no "não há nada de novo em meu comentário", espero que os outros leitores também tenham gostado.

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