quarta-feira, 23 de julho de 2014

Os festejos em Santa Rosa de Lima

* Por Mara Narciso

Em julho, na pequena comunidade de Santa Rosa de Lima, com 2.568 habitantes, contados em 2010, acontecem suas festas religiosas, hoje, de importância regional. O lugar, um distrito distante uma hora da sede do Município de Montes Claros, localiza-se numa área cercada de montanhas, com um vale fértil ao centro, o vale do Rio Verde Grande, porém, o povoado está no topo de um morro. Castigada pela seca, que já se encomprida por três a quatro anos, seguindo a tendência de todo o norte de Minas com suas chuvas mal distribuídas, vê-se que o solo está esturricado e o mato seco, exceto em alguns pontos irrigados por nascentes perenes, que brotam por debaixo das serras e seguem por estreitos regos, fertilizando as veredas.

As Festas, como já foi feito em Montes Claros, que ajuntou suas três festas religiosas, de meses diferentes em três dias, também são comemorados três santos em dias subsequentes. São eles Bom Jesus, Santo Antônio e Santa Rosa de Lima. Há os shows, e barraquinhas referentes à parte profana, mas, para a porção sacra, a praça principal, com sua igreja recém-pintada, é enfeitada com flores e bandeirolas, havendo missa, cânticos religiosos, procissão e queima de fogos. O santo do dia fica arrumado numa casa, sendo buscado pela população. Levam em procissão, após a missa, os dois outros santos restantes, em seus respectivos andores enfeitados, cada um de uma cor, descendo a rua, entrando na referida casa, que, com seu jardim grávido de gente, aceita a todos, enquanto um pequeno grupo auxiliar vai distribuindo velas dentro de uma campânula de papel, constituindo uma espécie de lanterna. Quantos chegam recebem essa luz, que, com a iluminação pública precária, exerce efeito visual de sonho antigo. Entoando suas músicas, as pessoas esperam, algumas do lado de dentro e outras do lado de fora, e quando todos estão com as suas velas, ficam paradas, em fila polonesa, deixando passar por ele os santos e por último, a padroeira no seu dia, no caso, a Santa Rosa de Lima. Trata-se de uma imagem de cerca de um metro, com seu manto escuro e semblante de tristíssimos olhos azuis, sobre um andor cheio de flores, levado por quatro fiéis. É uma Nossa Senhora em mais um dos seus inúmeros títulos.

Subida a rampa, rezando, cantando, seguidos por músicos, e soltando foguetes, aqueles santa-rosenses, junto a um padre da Paróquia de São Norberto, de Montes Claros, circundam a praça por três vezes, e ao fim levantam o mastro e soltam mais fogos de artifício. O ritual se iniciou em 1944, quando o distrito, então chamado Vila do Barreiro (antes Vila do Bengo e Barreiro do Bengo), trocou de nome a pedido de Felinto José Pereira, Filó, fazendeiro proveniente da região do Rio Gorutuba. Ele tinha no distrito uma propriedade chamada Santa Rosa e nela guardava uma imagem de Santa Rosa de Lima, trazida do Peru por sua esposa. O então prefeito de Montes Claros, Senhor Alpheu de Quadros atendeu ao seu pedido, mudou o nome do lugar para Santa Rosa de Lima e desde então a Santa passou a ser festejada como padroeira.

Quem é de fora e vê o movimento das festividades naquela caminhada sacra e pacífica, nem imagina, mas se tem curiosidade sobre a origem da festa, ouve logo algum morador falar que no final da década de 1960 houve um grave cismo religioso entre católicos e protestantes. Tal guerra adquiriu proporções grandiosas, foi divulgada pela revista “O Cruzeiro”, tendo inclusive sofrido intervenção do DOPS.

Lutas violentas foram travadas algum tempo depois de José Gonçalves de Freitas, Dió, chegar à comunidade, vindo de Francisco Sá, com um rádio e uma fala mansa. Conversava com as pessoas, mas não tocava em religião, e nem informava ser ele um pastor protestante. Depois de algumas visitas, chegou com um grupo de evangélicos brancos, naquela comunidade de origem quilombola, sobre um caminhão, onde homens e mulheres abriram a Bíblia e começaram a orar.  Desde então, apareciam nos fins de semana. Após as orações iam embora. Quando conseguiram convencer algumas pessoas, passaram a descer e exercer suas atividades religiosas nas casas delas. Os convertidos foram hostilizados pela população, que jogava pedras sobre suas residências, abandonou professoras, lojas comerciais e outros profissionais. Até agressões físicas aconteceram. Quando os evangélicos começaram a construção da sua igreja, cada grupo distinto protestantes e católicos tinha um líder (não havia padre morador do lugar), e o Deus de cada um era o certo, e o Demônio estava do outro lado. Por sua vez os crentes pregavam ser inaceitável adorar santos de barro, a ruína dos católicos, atitude que os condenaria ao inferno.

Quem vê a relação de boa vizinhança entre as quatro denominações evangélicas atuais, que ali dividem espaço com os católicos e até participam da festa a seu modo, nem pode imaginar como foram árduos aqueles tempos. Envolvendo fé e esperança, os moradores de Santa Rosa de Lima não se separam em religiões naquela comemoração, festejando a própria comunidade. Esta, em seus primórdios, constituída por escravos fugidos, edificava suas casas na parte alta para evitar ataque surpresa dos inimigos. Após tê-los entre seus iguais, após grandes sofrimentos, para o bem de todos, decidiram pela paz. E que proclamem como universal essa decisão.

(Algumas informações foram retiradas de “Relações Interétnicas e Cisma Religioso” em uma Comunidade Nortemineira”- Camilo Antônio Silva Lopes)

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


2 comentários:

  1. É bom ler uma história real de sensatez através da trégua. Quem dera maximizar as proporções dessa boa-vizinhança para os conflitos gigantescos que nos ameaçam (vide a questão Rússia x Ucrânia...). Bom texto, Mara!

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  2. Uma lição da pequenina Santa Rosa de Lima para o mundo. Obrigada, Marcelo.

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