domingo, 20 de julho de 2014

Mané Fulô

* Por Cecília Prada

As coisas que se passam nesse sertão que por aí, ninguém sabe ao certo. O sertão é a terra do espicha-beiço, do diz-que-vale. De todos-falam, ninguém-sabe, reparou? Terra das coisas que crescem no sem-mais, ampliadas verdades, no cada-dia. Mesmo porque, me diga, onde é o sertão hoje? Que tem, por aí, ainda tem, por esse Brasil afora, tão grande. Aquilo que só se sabe, se adivinha, de escuro, de fechado, longe e impossível. Mas este lugar agora, Laginha, que era sertão antes, não, não agora. Depois da barragem, depois da BR que passou por aí, não se sabe mais, já viu sertão de verdade com TV, com as pessoas ficando em casa para ver novela? O sertão ficou foi nas estórias da gente, as lembradas pelos velhos, dos outros tempos.


De Mané Fulô, então? Me lembro. Até conheci, morreu muito velho. E ouvi muitas vezes, me disseram, essa estória então, de tantas vertentes... que anda por aí, engrossada até. Daquele menino, sim, mofino e tristinho, encorujado de nascença, parecia, o Manezinho que ninguém dava nada por ele, gente dos Véiga, tudo meio bicho-do-mato, às vezes juntavam dois num burro mambembe, vinham vender no povoado um cacho de banana-ouro, meio saco de polvilho, umas coisas. O menino enfezado, sim, que vinha da roça com a mãe, viviam aparecendo na casa do Coronel Peixoto – o daquela casa grande, oito janelas fechadas dando para o pátio da igreja, oito janelas escancaradas para o largo, vistosa, reluzindo nos caixilhos verdes, na lisura do reboque retocado todo o ano.

Diziam que era filho natural do Coronel. Dos tantos.

A mãe empurrava o menino, “toma a benção do Padrinho”, ele se enroscava, tosco e transido, se esfregando no batente da porta, amassando sem jeito um boné de brim pardo, muito sujo.

Um menino que nunca ninguém ouviu falar, naquele tempo, nunca. Paresque que nem tinha voz. Que de vez em quando levava uma moeda jogada pelo padrinho coronel num quase nojo, “toma aí, ô moleque”.

Mas que ia crescendo, muito magro, de olhar enviesado. De prosa pouca no normal, depois se desenrolando aos trancos, no botequim – ia crescendo nele uma animação, pegava até a conversar com qualquer um. Dizem até que, já homem, se pegou de amizade com um moço-doutor, médico, que veio da Capital e morou uns tempos em Laginha, um que gostava de puxar prosa com todo mundo – meu pai contava, que eu era menino nesse tempo, sabe. Diz que de repente, no meio da conversa, esse moço-doutor puxava de um caderninho preto de capa de oleado, tomava nota de tudo – meio estranho, ele. Por aqui já passou muita gente.

Assim que, parecia, tivesse dois Mané Fulô – um que era aquele meio-traste de se ver, miúdo, baixinho mesmo, coisa de pouca valia, quieto e de olhar enviesado, que ficava num canto de sala, de igreja, de praça, com uma espécie de cisma. Diz que depois de crescido, mocinho, ficava tempão na esquina da casa do Coronel, olhando fixo o batente da porta principal, sempre aberta como é costume da gente daqui. Como se quisesse entrar, sozinho, sem a mãe que já tinha morrido, se dirigir ao Coronel... Gente fala demais. Me diga, como é que podiam saber o que ele pensava, me diga? No que sim, é que naquela conversa palrada que começou a desenvolver no botequim, crescia, em arroubo e imaginação – deu para arrotar umas grandezas que nunca teve, como a estória da égua que comprara de um bando de ciganos, no engano, desmerecendo pra comprar barato. Pois já viu alguém enganar cigano em matéria de cavalo, seu? Certo é que era uma egüinha meio boa, empinadinha e de trote ligeiro, matreira – diz que sabia tão bem o caminho da casa, na roça, que levava Mané direitinho, pateava abrindo a porta, despejava ele na cama para curtir a bebedeira. Se chamava... deixa ver que estou meio esquecido, olhe uns diziam que se chamava, a egüinha, Beija-Fulô, ou alguém me disse Florzinha?... ora, que importância tem? Tem. Tem, sim. Teve muita, essa égua, em toda a estória que veio depois, com os desenvolvimentos. A gente tem de contar as coisas como elas são – mesmo porque tudo é impreciso, e ninguém sabe de nada, nada mesmo, o senhor não acha, mesmo eu, mesmo o senhor, como é que se pode contar o assim por-dentro das pessoas, como elas eram, o que ele, Mané, aquele menino enfezadinho, aquele moço calado, aquele bebum de conversa destampada... ninguém não sabe direito, por isso tem de contar no mais certo que se pode, o nome da égua.

Porque a Beija-Fulô – e não a Dasdor, como disseram depois – foi o verdadeiro amor daquele homem, tou certo. Não sei se dá para compreender, hoje, que só carro é que vale. Mas naquele tempo, ter um cavalo... pense bem, o sujeito, e um sujeito que nem Mané, Mané Fulô falado, veja bem só, que nome, então um Mané Fulô qualquer, que andando por aí, apeado e transido se esfregando em batente de porta, mal falando... e um dia, sabe-se lá como, descobre que pode aparecer rompendo no povoado na hora da missa solene do domingo, chispando casco na ladeira diante da igreja, e vir se pôr de fronte alta no futing do largo, ele, olhado, visto – pela primeira vez. Dá para imaginar?

Dali por diante foi meio-centauro, até aquele fim, que é conhecido, o senhor decerto já sabe, mas foi assim, na nova identidade achada, o complemento, homem-cavalo, que começou a se destravar. A vir, impávido, para as reuniões da homarada, no botequim, cada vez mais falante. Se encontrava então um forasteiro, um ouvido emprestado, não parava mais. Foi assim com o moço-doutor, aquele alto e míope, de riso bondoso, que veio da Capital e morou uns tempos por aqui. Parece que sempre querendo mesmo ouvir as estórias do sertão, sabe? Já falei, dizem que tinha um caderninho de capa de oleado... me esqueci do nome dele, mas foi importante nesta estória, de Mané Fulô, que estou querendo le contar.

Que é mesmo uma estória de transformação, de como-é-que-aquele sujeito... A gente se admira, depois. O que eu acho, também já vivi tanto, é que a gente, nós todos, é que nem desenho de menino num caderno, que primeiro nem sabe fazer, só uns traços, a lápis, borrão. Depois vai enchendo de cor, de linhas, de tanto rabisco, vai somando céu e estrela, mãe, pai, a vizinha do lado, chaminé de fábrica, carro, avião, foguete, polícia... Estou falando de menino de hoje, feito meu neto. Naquele tempo, o do sertão, o dos homens do sertão, era menos coisa, nem polícia não tinha – Laginha era quase uma terra de ninguém, assim largada, nem o Coronel Peixoto, aquele do casarão da praça, para impor respeito, com jagunçada, como se fazia antes. Sozinho e velho, os filhos doutores, na cidade, as filhas casadas. Por isso, nem mais que por isso Mané Fulô se agarrava com aquelas manias, de contar prosa, de se dizer “sangue de Peixoto” – que antes, no tempo do Coronel moço e prosa, era sangue de se temer... Manezinho dos Véiga insistia. Gastava muita conversa, na venda. Dizem que tinha mesmo mania de ficar contando do que sabia, dos valentes do sertão brabo, de outrora – do Bejo e do Miguilim, do Adejalma. Do Zé Boi, tão valente, mil brigas, que tinha caído de um barranco e quebrado o pescoço, e, veja, o próprio Miguilim, que era o pior deles, não foi depois morrer gemendo entortado de artrite, na cama?

É como lhe digo, cada qual cumprindo seu desenho, na vida. E o do Mané Fulô, que afinal tinha de cumprir o seu – que as coisas, quando têm de acontecer já vêm escritas, tudo no miudinho dos dias da gente, tal qual. O senhor não acha? E todos nós somos iguais – que temos todos, embutido, um outro personagem, dentro de nós, de nossa mesmice, paresque. E aquela figura enfezada e meio ridícula, metro e sessenta se tanto, do Manezinho, nascido encorujado, meio bobo-de-fazenda... e tinha de existir uma Beija-Fulô – ou Maria Dasdor, quem sabe, mas desta pouco se falou pra dizer a verdade, não sei se é estranho, mas a besta, aquela Beija-Fulô ou o que sei lá, a besta é que foi a peça importante – se não fosse ela...

Porque foi com ela que o Toniquinho das Pedras, às vezes também chamado de Toniquinho das Águas, se engraçou – com a besta, a egüinha. Foi, sim. Aquele Toniquinho benzedor, meio feiticeiro, diziam. Que era, veja só, o maior inimigo do moço-doutor, que vinha lá da Capital com remédios e receitas tirar sua freguesia. Toniquinho das pedras-águas, que não fazia receita no papel, mesmo porque não sabia escrever, mas benzia, tratava de tudo, aconselhava que ninguém devia tomar remédio de botica, só o “cordial” que ele mesmo preparava, cobrando muito baratinho. E olhava feio, de arrevezado, para aquela amizade de botequim que Mané Fulô ia pegando, meio visguento, com o doutorzinho – o único que dava aquela trela toda pra ele.

Pois tem isso – quer que lhe diga? Esta estória que o senhor sabe, que corre por aí, mil vertentes, cada um que acrescenta o de seu, o como acha que de verdade aconteceu... que foi um dia que ficou, em Laginha, o dia em que o Mané Fulô... o senhor sabe. Mas por mim, tem vez que penso: será que o Toniquinho, quem sabe não estivesse de compadrio com o tal do Targino. Não tivesse mesmo chamado o Targino, quem sabe, pra meio que resolver o seu negócio da besta chamada Beija-Fulô... podia ser, não podia? Pois olhe... e a gente falando até parece que esclarece mais as idéias, não acha? Que vai descobrindo pouco-que-pouco o que vem sempre escondido nas dobras de todas as estórias, que nunca são aquilo que dizem que são, que as pessoas contam... Bem que dizem que quem conta um conto acrescenta um ponto. Há!há!

Mas não vou acrescentar, não tenho tenção. Só meu pensamento dessa estória, tenho direito, não tenho? Porque tem coisa... le falei, por exemplo, que só o doutorzinho dava trela pra Mané Fulo, no botequim... mas pense bem – se as pessoas, no depois do acontecido, sabiam contar tão bem o que Mané falava, assim, nos pormenores da fala, bem, é porque se não davam trela, davam ouvido, pelo menos. E nessas coisas, de ouvidas, diversas se grudavam já naquela altura na figura mirrada sem jeito do manézinho lá de trás, do começo da vida... eu não lhe disse, a gente vai se formando é que nem desenho do meu neto, primeiro só tem rabisco, depois, tem nuvem, casa, trovoada e tiro, mulher... No caso bem concreto do Manezinho, teve a besta, a mulinha bem-amada.

E o tal do “sangue de Peixoto”, sim, eu acho – uma reserva de paixão? Ele já ia fervendo meio disparado, paresque, na fala, na vontade pelo menos, do Fulô, que não era branquelo nem perrengue como esses Véigas... dizia assim, dizia mais, sou mesmo é Peixoto, raça de gente brava... e que não viessem mexer com ele porque não levava desfeita pra casa, e que pra desaforo grosso a sua Beija-Fulô não dava condução.

Dizia. E às vezes até dizia muito, arrenegando, que só queria três coisas na vida, que eram uma sela mexicana para arrear a Beija-Fulô bem merecida e pimpante, no dia de domingo... – e essa sela, sabe quem tinha? Pois veja como as coisas se amarram. Como se armaram. Era o Toniquinho que tinha a sela linda e virgem de uso, pra quê queria se não tinha a égua do seu desejo?... Coisas assim. Também, dos outros desejos, mais dois, de Fulô: ser boticário ou chefe-de-trem-de-ferro, fardado de boné, que ele dizia... nada feito, como podia? O homem nem sabia ler. E o que lhe sobrava, já iam vendo, era a raiva, só uma raiva, meio ridícula no começo, mas depois um ódio que ia crescendo nele – do Toniquinho. Ou da vida, se pode pensar.

A Maria Dasdor? O senhor sabe como dizem, que alguém entrou na estória como Pilatos no Credo? Foi assim. Eu acho. Pretexto, talvez fosse, para a intervenção do Targino? Como disse, nunca se sabe ao certo, no fundo das coisas. Mas, siga o meu raciocínio, acha que se houvesse compadrio, conluio mesmo do Targino com o Toniquinho das Águas – como eu acho... acha que Targino, meu Deus! aquele valentão que vez em quando assombrava o sertão naquele tempo, sujeito feio como defunto vivo, magro de magreza de ruindade, gasturento como faca em nervo, revólver sempre pronto no dedo, então, sujeito assim, acha que ia se apresentar sem mais na porta do botequim naquela tarde, com tenção de tomar à força do Manezinho, meu Deus, uma mula? Égua que fosse, sei lá...

O que sim, de verdade, é que Manezinho noivara. No comum das coisas. Vai um dia, repimpado na Beija-Fulô, descendo a Rua do Rosário, reparou numa mocinha bem posta, de olhos gateados, na janela. Assim como quem espera marido. Ou noivo. Mané passou, voltou, repassou – essas coisas, normais, que assim se procederam. Tinha gente que nem acreditava, zombava. Mas a moça até ia pedindo dinheiro pra bordar o enxoval, costume de Laginha – moça solteira era desgraça certa, obra boa contribuir prô casamento. Nem que fosse com aquele meio-traste do Manezinho-da-Mula – como já ia sendo chamado.

Agora, o que eu acho que foi cena de não se perder mesmo, de estapafúrdia, portentosa – deve ter sido aquele momento, do Targino, o Targinão, o brederodes, o diabo do sertão, se apresentando na porta do tal boteco, enquadrado, botando a voz no diapasão certo, largando: Mané Fulo tenho um particular, com licença de seu doutor... Porque foi então que de fato a estória começou. Veja bem, o que dizem... verdade que com essas estórias de antigamente, com tanta coisa de contada e passada, nunca se sabe se foram ao certo assim, já lhe disse, se quem contou... Ou se foi arrumada. Bem arrumada, pelo menos – pois assim me disseram, que o Targino, Targinão magrelo e feio, apareceu na porta do boteco mesmo no instante que Mané tava é se gabando prô moço-doutor, coisa que assim meio conversa de bêbado, que queria acertar um tiro bem no meio da fuça do Toniquinho, morre no meu pinguelo, seis tiros, se fizer algum caborje prá riba da minha neguinha Beija-Fulô... E porque era sangue de Peixoto, e coisa e tal...

E como lhe digo – naquele momento, mesmo, o Targino ensombrando a quadratura da porta do botequim, o vozeirão encavado, Mané Fulô, um particular... não é demais?

E aí, no instante, cadê o mané-valente de instante-antes, hein? Nada. Nadinha. Diz sim que derreado, escorregado pra beira da cadeira, paresque querendo se levantar, num respeito até?... meio curvado em mesura, desorganizado, foi cantando, mão estendida até, boa-noite seu Targino, com´passou?

Targino foi direto às falas. Peremptório e horrível: Escuta Mané Fulô, a coisa é que eu gostei da Dasdor, e venho visitar sua noiva, amanhã, já mandei recado avisando ela... E que ele ficasse quieto, era coisa de um dia só, capricho, que depois eles até podiam casar que nem se importava. Mas se não...

E Targino ria um riso soturno, gélido, como de um carrasco manchú. Depois, sem mais cortesias, virou-se e foi-se. O que ficou foi uma confusão, de destape, de todo-mundo falando ao mesmo tempo, magotes de gente reunida na esquina, coitado do Manezinho, coitada dessa moça... Diz que o moço-doutor saiu amparando Mané, que chacoalhava de medo. Que foi levando ele pra sua casa, já insuflando uma coragem que ele sozinho que nunca que ia de ter, mesmo. Que foi falando palavra gorda, dessas muitas, coisa de amor, honra, herói, obrigação, que sei lá – palavras de doutor. Diz que, sei lá, chegou a falar assim por que Mané não ia pedir proteção prô Coronel Peixoto, mesmo... pois não era sangue de Peixoto?

Mané desconversou, disse que não amarrava cavalo com ele... égua, mula, no seu caso?

Quem ouviu atrás da porta da casa do seu doutô – e que teve gente ouvindo, teve – diz que aí o moço da Capital entrou rijo na estória. Na invenção, que essa é danada de boa com gente de instrução, dizem. Diz que o moço foi falando, daquele jeito manso, manso, com o Mané, botando ele pra dormir feito menino, não se preocupe não, mano, vamos inventar um meio de enganar o Targino... Que Mané, caindo de sono de bêbado, ainda ia teimando no desespero, qual, seu doutô, adianta não, Targino é bicho danado de ruim...

Aí que acordaram todos naquele dia que ia marcar história em Laginha. O doutor levantou cedinho, disse que ia tomar providências. Foi. Diz que foi falar com um Coronel, não o Nhô Peixoto, não, que esse não comandava mais a reza, velho e cansado, mas tinha um outro coronel, ou meio-coronel, chamado Melguério. Só que o chamavam de berda-Merguério... Ouviu, fez que nem era com ele, não tinha gente pra pegar o Targino à unha... ninguém não tem sopro pra esse homem...

Foi ao Vigário, o doutor, pediu. O reverendo olhou para cima, com jeito de virgem nua rojada à arena. Prometeu rezar.

Então o doutor, desanimado, temendo já pela própria pele, voltou para casa, verrumando as idéias para ver se surgia alguma. Mané Fulô não tivera coragem de pôr a cara para fora. Os Véiga, sabe-se lá como, haviam acorrido, solidários – mas adiantava, gente tão perrengue? Um Véiga mais velho, barbaçudo, chamou o doutor para o canto. Que aconselhasse o Manezinho a não fazer nenhuma besteira, entregasse o caso a Deus, não se metesse... E a moça era boa, a gente esquece, faz de conta que não aconteceu nada, é que nem casamento com viúva...

Maria Dasdor adoecera de tanto pavor, sozinha com a mãe, chamando pelo noivo... Targino ainda não aparecera – tivesse desistido, quem sabe? O dia avançava, na expectativa. Até que aconteceu: aquilo que ninguém esperava. Que o pedreiro que respondia pelo nome de Tonico das Pedras, ou Tonico das Águas, aquele que tinha fama de feiticeiro... e tinha também uma sela mexicana encostada por falta de animal, e cobiçava a Beija-Fulô, o grande amor do Manezinho Fulô... O senhor está vendo como são as coisas?... Bem, o próprio, o Toniquinho, apareceu de repente lá na casa do doutor, pedindo pra falar com o noivo desonrado. E se trancaram no quarto que dava para a sala, num escuro de conversa enrolada que ninguém por mais que se esforçasse conseguia ouvir direito. Só uns entortes de entonação, um ir-e-vir feito marulho de água, dava pra entender que o Tonico insistia, veemente, o Mané negava, gago, relutante.

Mas de repente, a porta do quarto se abriu e surgiu o Tonico, muito cínico e sacerdotal, pedindo que lhe trouxessem agulha e linha, um prato fundo, cachaça e uma lata com brasas. Aí Mané Fulô apareceu também, mais amarelo do que nunca, amassado, sofrido. E foi dizendo assim: que era pra entregarem a Beija-Fulô prô seu Toniquinho, que ela agora era dele.

A veigarada caiu no choro – aquilo era um testamento, um último pedido de quase-defunto. Mas os dois donos da besta voltaram a se trancar no quarto, com os aviamentos, ficaram lá bem uns vinte minutos.

Enquanto isso a hora, suprema, do encontro, se aproximava. A tensão, no ar, era coisa como de tempestade iminente. A cidade se engolfava em murmúrio, já vinham pressentidos os passos fatais, bicho-papão que vinha vindo, implacável, seu Targino – cochichavam – já tinha saído de sua casa dependurada no morro. Vinha que vinha, mesmo, buscar Maria Dasdor. Fechem as portas e as janelas, que ele ai vem, vai passar mesmo por aqui, na frente da casa!...

Nisso, abriu-se de novo a porta do quarto, Mané Fulô veio primeiro, teso, meio sonâmbulo, parecia. Diz que tinha um brilho esquisito no olhar. Seu Toniquinho das Pedras vinha depois, perguntando já – que coisa! – pela Beija-Fulô. Mané passou sem ver ninguém pelas mulheres que rezavam, pelos irmãos. Um deles até interpelou o Tonico, o que o senhor foi fazer com meu irmão? E Tonico, no retruque: Fechei o corpo dele. Não careçam de ter medo, que para arma de fogo eu garanto.

E assim foi que Manezinho naquele dia saiu para enfrentar o maior bandido da região, desprovido de garrucha, só com uma faquinha quicé quase canivete... O outro, armadão e terrível, vinha lento, com caminhada de dono da rua e do mundo. E decerto se espantou quando deparou, do outro lado da rua deserta, com a figura ridícula do noivo da Dasdor. Do ex-dono da Beija-Fulô. A dez metros do inimigo Mané parou – enquanto por trás das persianas todos olhavam, não acreditando... e rompeu num palavrão tamanho, que envolvia a mãe do valentão.

Targino puxou o revólver, pronto, enquanto os insultos se cruzavam no ar, piolho, sujeito idiota, cachorro... Por cima de tudo – se ouviu! – um grito de voz diferente, engrossada, que saía da garganta do Manuel dos Véiga, incrível, do Manezinho?... Atira, diabo, que eu estou fechado e a tua hora já chegou!

E cresceu, grandioso, para cima do inimigo. As balas do Targino ecoaram cinco vezes, rua afora – por trás das persianas todos se abaixaram, rastejando, querendo sumir chão a dentro. O choro das mulheres era mais um uivo de animal ferido, na reza pela alma do Mané Fulô. Quando se fez um silêncio, foram todos arriscando um olhar, pelas frestas – e lá estava Targino, fixo como um manequim. E Mané Fulô dando cabo dele, o esfaqueando bem na altura do peito. Targino foi se vergando, conhecendo o chão, lambuzado na poeira – desviveu, num átimo, parece que num espanto. Foi o que disseram.

E o que viram, num espanto maior, todos os que das casas, das ruas laterais, do largo, acorriam para a cena do encontro – que, crescido, de corpo pela primeira vez endireitado, como quem toma posse enfim da vida, aquele mesmo Mané dos Véiga, dito Mané Fulô, até Mané da Mula, o Manezinho, aquele encorujado de nascença, se virava, distanciado do corpo inerte do Targino, mudava seu rumo, possuído de uma energia nova, impava, atrevido, galgando no passo decidido e ritmado o ladeirão que ia dar no largo da Matriz. Como quem fosse se desencumbir de tarefa maior.

No que, chegado ao largo, foi avançando muito firme, pelo meio da aléia central do jardim. Primeiro, como quem fosse à igreja – achavam? Mas depois, no último lance, se desviando e encarando, desafiador, aquela casa grande, oito janelas fechadas dando para o pátio da igreja, oito janelas escancaradas para o largo, vistosa, reluzindo nos caixilhos verdes, na lisura do reboque retocado todo o ano. A casa do Coronel Peixoto.

E ali chegado, já não mais o transido menino a quem atiravam uma moeda para que aparasse no ar – se quisesse. Não, nem o mocinho tímido, o rapaz enfurnado e tristonho, nada, nem o bebum choramingas e covarde, nada. Mas sim, o homem. O homem recém-nascido do cadáver do valentão Targino que lá embaixo na rua poeirenta se descompunha. E esse homem avançava pela porta da frente, sempre escancarada – como se o esperasse, seria? e com um pontapé violentava a porta intermediária, do corredor, a que dava para a sala onde entrevado, na cadeira de rodas, aquele que fora o temível Nhô Peixoto que ninguém em outras eras ousava contrariar, vegetava, desvalido.

E que então – de todo o ódio acumulado naqueles anos todos de Mané, bastardo, miserável e sem direitos, a faca, quase um canivete, que trazia hirta na mão, e ainda ensangüentada, se escapou, atirada. E numa trajetória afiada foi atingir, certeira, a jugular do seu único, irremediável, implacável inimigo.

O sangue jorrou, de um vermelho vivo e pungente, uma sangueira sem limite, escorrendo pela roupa, pela cadeira, pela parede e pela casa do Coronel, pelo largo e pelo povoado. Ensanguentando até mesmo esta estória – sangue de Peixoto, sem contestação.

(Baseado no conto “Corpo Fechado” de João Guimarães Rosa – incluído na antologia “Quartas Histórias”, org. de Rinaldo de Fernandes – Garamond, Rio, 2006)


* Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem cinco livros de contos publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP), onde termina um romance autobiográfico. 

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