sexta-feira, 25 de julho de 2014

A Via Sacra

* Por Vítor Orlando Gagliardo

- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
- Amém!
- Ide em paz e o Senhor vos acompanhe
- Graças a Deus!
- Pai, vamos dar uma volta?
- Vamos sim, filho.

Os dias eram sempre iguais para Alfredo e Marquinhos. Todos os domingos eles iam à missa das dez horas.
E depois não tinham mais o que fazer.

Alfredo nasceu no Maranhão e decidiu tentar uma vida melhor no Rio de Janeiro. Veio escondido da família em uma caçamba de caminhão aos 14 anos. Uma vez comentou com seu pai, Seu Sebastião, seu desejo de sair de sua terra natal. Levou uma surra que jamais se esqueceu em toda sua vida. Alfredo jamais voltou ao Maranhão ou teve qualquer notícia de seus familiares. Hoje sabia que certamente seus pais já teriam morrido. Embora não admitisse, sofria calado.

Já na Cidade Maravilhosa, dormiu em abrigos. Fazia pequenos bicos em troca de um prato de comida. Viveu assim até atingir a maioridade.

Finalmente conseguiu seu primeiro emprego como faxineiro de um prédio no Méier. Ali conseguiu também um pequeno quarto para dormir. Nos seus dias de folga, gostava de ir à praia de Copacabana e jogar o futebol da madrugada no Aterro do Flamengo. Alfredo jamais se atrasou em seu trabalho.

Foi neste emprego que conheceu Jacira. Ela trabalhava como empregada doméstica no apartamento 403. Foi uma paixão platônica. Jacira tinha uma história de vida parecida com a dele. A diferença é que veio da Bahia com a mãe (Dona Regiane), após o pai ter sido morto pelos militares que o confundiram com o que chamaram de ‘baderneiro comunista’.

Jacira morava com a mãe na casa de uma tia (Dona Joana) e a prima (Marcelle) no morro do Borel, na Tijuca.

O síndico, seu Abelardo, sabendo do romance dos dois, intimou que Alfredo deixasse Jacira. Era proibido o relacionamento de funcionários com pessoas que circulassem pelo prédio.

Alfredo acatou, mas continuou encontrando Jacira depois do horário. O porteiro-chefe, Ziquinha, que queria empregar um primo (que ninguém sabia que era primo), Fidélis, contou ao síndico que Alfredo e Jacira continuavam o romance.

Nesse mesmo dia, Jacira contou a Alfredo que estava grávida. A felicidade de Alfredo durou um corredor.
- Você está despedido – disse Seu Abelardo.
- O senhor não pode me demitir. Sempre trabalhei de forma honesta e correta aqui dentro. Ninguém nunca reclamou do meu trabalho.
- Você não cumpriu minhas ordens.
- Não posso ir embora. Vou ser pai. Eu imploro.
- Está aqui tudo o que lhe devemos. Passar bem.

Fidélis assumiu o cargo de faxineiro. Alfredo foi morar com Jacira no Borel. Seu relacionamento com Dona Joana e Marcelle era péssimo. Brigavam o dia inteiro e a todo momento ele ouvia que não estava em sua casa. Alfredo se calava por Jacira e Dona Regiane. E sabia que na pior das hipóteses, ele realmente não estava em casa.

Oito meses depois

Alfredo ainda não tinha conseguido seu emprego. Fazia alguns bicos por alguns trocados. Para piorar a situação, Dona Regiane faleceu. Mas, enfim, tinha um motivo para sorrir. Segundo previsão dos médicos, seu filho nasceria naquela semana. Ele não via a hora de colocar Marcos em seus braços. Sentado na sala de espera, Alfredo roia o resto de unhas que ainda tinha. Já tinham se passado duas horas e nada dos médicos. Alfredo estava aflito. Alfredo viu o médico no corredor vindo em sua direção.
- E então, doutor?
- Você é pai de um menino lindo com muita saúde.
- E a minha Jaciara, doutor?
- Então Alfredo ... (longo suspiro)
- O que aconteceu? Diga logo, doutor!
- Ela teve uma hemorragia e infelizmente, não conseguiu sobreviver.

Alfredo se ajoelhou e começou a gritar
- Por que, meu Deus?! Por que, meu Deus?!
- Meus sentimentos! Sei que é um momento difícil, mas você não pode se entregar. Lembre-se que agora você tem um filho.
- O que vou fazer? Não tenho para onde ir.
- Procure ajuda na Paróquia São Domingos. Tenho certeza que vão ajudá-lo na medida do possível. Agora venha conhecer seu filho.

Quando Alfredo pegou Marcos em seu colo, mais uma vez não conteve as lágrimas.
- Meu Deus! Me ajude! Que meu filho possa ter uma vida melhor!.

Quinze anos depois

- Pai, quando vamos ter nossa própria casa?
- Deus sabe a hora certa, meu filho.

Durante todos esses anos, pai e filho moraram na paróquia. Sem conseguir emprego, Alfredo prestava serviços para a Igreja sem remuneração. De vez em quando, arrumava uns bicos. Marquinho estava matriculado em uma escola municipal e cursava a sétima série. Após assistir a missa dominical, os dois resolveram dar uma volta em uma feira próxima da Igreja.
- Tô com fome!
- Filho, não temos nenhum dinheiro.
- Minha barriga tá doendo.

Alfredo ficou arrasado e sem saber o que de fato fazer.
- Me espere na porta da Igreja. Em quinze minutos eu volto com uma surpresa.

Antes de Marquinhos sair, o pai se ajoelhou.
- Aconteça o que acontecer, saiba que te amo e sempre te amarei – e deu um longo abraço no filho.

Desorientado, Alfredo chegou em uma banca que vendia biscoitos.
- Irmão, piedade! Meu filho está com fome e não tenho nenhum dinheiro no bolso. Você poderia me ajudar?
- Você acha que eu tenho cara de Madre Teresa de Calcutá?
- Piedade, irmão!
- Vai trabalhar seu vagabundo! Saia logo daqui!

Alfredo pegou um biscoito da barraca e saiu correndo a toda velocidade.
- Pega ladrão! Pega ladrão! – gritou o comerciante, correndo atrás de Alfredo.

A confusão foi estabelecida na feira. Alfredo foi parado abruptamente por dois feirantes. Derrubado no chão, levou diversos chutes e pisões. Uma senhora, Dona Florinda, que estava na feira, reconheceu-o.
- Parem com isso! Ele trabalha na Igreja.
- Ele trabalha para o Diabo – disse o comerciante em meio a um chute.

Marquinhos, que estava sentado na porta da Igreja, ouviu toda a confusão e ficou curioso em saber o que estava acontecendo.
- Será que meu pai vai ficar bravo se eu sair daqui rapidinho? – pensou

Como não esperava demorar, pensou que voltaria antes de seu pai. Marquinhos foi entrando no meio da confusão. Ouviu dois rapazes conversando sobre um tal ladrão de biscoitos.
- Merece morrer! – disse um dos amigos.

Sem entender muito bem, ele foi chegando bem no centro da confusão. A primeira cena que conseguiu avistar foi a de um caído no chão envolvido por uma poça de sangue. Viu uma senhora tentando ajudar o homem caído e um gordo em pé que cuspia no corpo.
- O que a Dona Florinda faz ali? –  pensou.
Marquinho correu em sua direção para ajudá-la. Quando a senhora percebeu sua chegada tentou detê-lo.
- Não meu filho! Não venha até aqui.

Marquinhos parou no susto e se ajoelhou
- Pai ...
- Esse ladrão é seu pai? – perguntou o comerciante.

Marquinhos não respondeu.
- Você deveria ter vergonha de ter um ladrão como pai.

O menino, com os olhos cheios de lágrimas, fitou o comerciante e chegou mais perto do corpo de Alfredo.
- Pai ... – e o abraçou.

Uma ambulância chegou ao local, mas Alfredo não resistiu e faleceu antes de chegar ao hospital. O enterro de Alfredo foi pago pelos membros da paróquia.
- Obrigado por tudo padre.
- Para onde você vai, Marquinhos?
- Tenho parentes que moram aqui perto. Vou procurá-los.
- Volte a hora que precisar.

Marquinhos e Padre Afonso deram um longo abraço. Alfredo nunca falou muito de seus parentes que moravam no morro do Borel. No máximo dizia que não eram boas pessoas.
- Posso ajudá-lo?
- Posso entrar tia?

Marcelle tomou um susto. Poucas vezes tinha visto o menino que agora estava crescido. Marquinhos contou toda a história ocorrida nos dias anteriores.
- Você pode ficar aqui o tempo que quiser.
- Vou ficar pouco tempo.

Marcelle morava sozinha. Tinha se divorciado e seu filho morava no Rio Grande do Norte. Os dois foram na missa de sétimo dia de Alfredo.
- Pai, vou vingá-lo e depois, nos encontraremos –  disse em meio a oração.

Cinco dias depois

- Vou dar uma volta.
- Não demore. O jantar está quase pronto.

Marquinhos sonhava todos os dias com Alfredo. A imagem de seu pai era sempre singela e ele sempre dizia:
- Resignação, filho! Deus vai prover.

Mas Marquinhos só pensava em vingança. Quando fechava os olhos, lembrava da imagem do comerciante gordo chamando seu pai de ladrão.
- Preciso de uma arma.
- Quem é você, moleque?

Marquinhos explicou toda a sua história para Tico, o chefão do morro do Borel.
- Você já deu algum tiro na vida?
- Nunca.

Identificado com a história do garoto, Tico resolveu ensiná-lo.
- Está aqui. Faça direito com suas próprias mãos – disse Tico.

Marquinhos acordou cedo para ir à missa dominical. Marcelle tinha ido a um bazar perto dali. Deixou uma carta de agradecimento por tudo. Após a missa, Marquinhos foi para a feira. Avistou de longe o comerciante. Sentiu um frio na barriga.
- Lembra de mim?
- Você não é o filho do ladrão de biscoito?
- Meu pai não é ladrão.
- Saia já daqui moleque. Ou você também vai me roubar?
- Você vai se arrepender da suas palavras.

O padre terminava suas orações quando de repente ouviu o som de três tiros. Assustado, foi para a porta da igreja. Ouviu uma gritaria e dois corpos no chão. Uma pessoa lhe disse que o menino acertou dois tiros no comerciante e depois tirou a própria vida. O semblante de Marquinhos era de conforto. Finalmente ia reencontrar o pai.
  
* Jornalista


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