segunda-feira, 21 de julho de 2014

A face desarmada

* Por Daniel Santos

Há vezes em que uma simples consulta ao passado pode nos dar a certeza de termos já vivido o melhor, embora não tivéssemos, então, a mínima consciência de que aquele tal momento era, sim, muito especial.

Entendi isso ainda na infância, quando vi meu pai despertar certa madrugada franzido de azias e estender o braço sobre minha mãe adormecida para alcançar o antiácido no criado-mudo. E aconteceu.

A luz do abajur incidia em cheio sobre o rosto dela e, ao observá-la assim sem os artifícios da maquiagem e de certo distanciamento próprio da convivência, ele me pareceu ... Não havia mágoa, mas desapontamento.

Comparada à foto de noiva no porta-retratos da cabeceira, mamãe distinguia-se da outra, não mais fagueira, não mais louçã: as faces caíam sobre o queixo duplo e a grenha grisalha debochava de toda a sua figura!

Papai tomou o remédio e beijou a testa da esposa antes de apagar a luz. Depois, imergiu no escuro e aceitou o silêncio. Não emitiu sequer um muxoxo de inconformismo. Houve ainda dois pigarros. Logo, ressonava.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

Um comentário:

  1. James Dean não envelheceu. A vida tem uma lei primordial: morrer jovem, ou envelhecer.

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