quinta-feira, 19 de junho de 2014

Santa destruída em uma igreja de Montes Claros  - MG

Em nome de Deus

* Por Elaine Tavares

No dia em que morreu havia parado, como sempre, para conversar com Idaléia. Ficara mais de hora, na tarde modorrenta de maio. Gostava da guria. Casaria com ela, pensava. Depois, atravessara o campinho até o mercado, onde compraria pão e leite.  Assoviava um ponto de macumba, distraído. Não sentiu dor. Só a sensação de explosão, como se múltiplas luzes piscassem de forma brutal. Enquanto caia, ouviu uma voz: “matamos o feiticeiro”. Não entendeu!

No átimo de tempo entre as luzes e frio do chão, Artur passou a vida em tela. Viu-se à beira da sanga, no interior do Rio Grande, cantarolando a mesma cantiga que a mãe. Ela lavava a roupa devagar, com as pernas negras e luzidias estendidas na margem. Tinha porte de rainha e riso de pérolas. Nas noites escuras lhe contava as histórias dos orixás. “São deuses?”, perguntava. “Sim”. Cada um guardava algo do sagrado: as águas, os ventos, os raios, os trovões, a luz. “Mas e esse, do qual fala o padre Miro?”, insistia, confuso. “É outro deus. Existem muitos deles. Cada povo tem os seus. E é bom que sejam muitos, porque assim não nos aprisionam”.

Na escola, o padre dizia: “só há um deus verdadeiro. Os demais são `falsos ídolos´, só Jesus salva”. E o guri apavorava, temendo que a mãe ficasse fora do céu. Ela ria: “não tem sentido um povo eleito. Que deus seria esse que escolhe uns e não outros? Seria como eu gostar mais de ti que da tua irmã. Não, não, não. Há deuses em tudo que vive, assim, nenhum nos domina”. Aquilo era pura teologia.

O tempo passou, ele entendeu. A religião tinha de ser libertadora. Re-ligare. Ligar com o sagrado, com o profundo em nós. Quem disse que precisava existir um deus?  Ele vira que o monoteísmo (religião de um único deus) fazia era mal. Quantas guerras, mortes e maldades foram realizadas por conta do deus único? Quantos terrores foram impingidos em nome de ser um povo escolhido? Não, de fato era melhor viver na harmonia com a vida, encontrando as coisas sagradas em tudo o que há.

Agora, já homem, ele via na televisão alguns pastores dizendo que alguém estava “possuído” pelo diabo. E outros dizendo que “deus”, o único, repudiava os homossexuais, porque eram anormais. E outros que pregavam ódio aos negros, aos índios, aos ciganos, ou a qualquer outro que não fosse igual. E outros que diziam que os deuses dos outros eram o próprio demônio. E se arvoravam em sabedores da verdade verdadeira, ditada por deus, o único. Ele se recolhia e seguia vivendo na harmonia com a terra, estabelecendo vínculos sagrados com cada coisa viva, as auroras, os entardeceres, as noites escuras, o sol. E quando chegavam os solstícios e equinócios ele dançava, nu, no quintal de casa, revivendo antigos rituais de amor com a vida.

Era um homem comum na pacata vila. Um funcionário público, cumpridor de deveres, pagador de contas. Brincava com as crianças, ajudava os velhos, cuidava dos bichos. Seu rosto era plácido, terno e rescendia a pureza. Ninguém lhe prestava atenção até o dia em que uma das mulheres da igreja próxima o vira dançando entre tochas de fogo, fazendo amor com a terra. “É o capeta”, espalhou.

E, do nada, os bons cristão da vila começaram a hostilizar o homem que amava a terra. Ele não entendeu, mas seguiu a vida. Até que naquela tarde, alguns lhes arrebentaram o crânio com um pedaço de pau. Ele suspirou e, entre luzes, pareceu ver a mãe, com seu riso de pérolas a lhe estender os braços. Os vizinhos entraram na casa em busca das coisas do diabo. Tudo o que acharam foi um lar, simples e limpo, de alguém que só tinha amor no coração.


* Jornalista de Florianópolis/SC  

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