sexta-feira, 20 de junho de 2014

Miguel Jorge: Veias e vinhos

* Por Nilto Maciel

O primeiro romance de Miguel Jorge, Caixote, é livro de um personagem sofrido, constituído de recordações entremeadas de diálogos do presente. Todo o passado ora está contado por um narrador onisciente, ora pelo protagonista-narrador. O presente, tão ou mais povoado de mistérios e sonhos que o seu passado mais rico, não é narrado: são diálogos teatrais, onde os dois personagens conversam, perguntam e respondem, dizem ou tentam adivinhar o exterior do pequeno quarto onde estão confinados. Obra densa, como uma tragédia. Ou uma escultura, uma sonata.
  
Nas peças O Visitante e Os Angélicos, reunidos num só volume, Miguel Jorge faz reaparecer as personagens sofridas do romance Caixote, em briga de morte com seus pesadelos, seus sonhos, suas mesquinharias, suas covardias. A primeira peça poderia ter sido escrita por Sartre. Não há nela o homem goiano, não estão nela os diamantes nem o monchão. Estão o Anjo, o Demônio, o estranho visitante, o esperado visitante, o príncipe encantado dos loucos, dos perdidos na escuridão da Esperança. A outra peça e bem diferente desta. Já não são duas personagens perdidas num mundo de alucinações e esperas. A técnica de diálogo já não é a mesma de antes. Sobressaem a loucura construída pelo crime dos enriquecidos, a leviandade dos novos ricos, a estreiteza mental e moral dos herdeiros, a hipocrisia. Numa das cenas o pai conta para o criado o crime que cometeu há muitos anos. Como na linguagem cinematográfica, a narração se transforma em cena.

O tema da loucura também é fundamental no romance Veias e Vinhos. Em “Psiquiatria e Subdesenvolvimento” (Revista O Saco nº 2, junho, 1976, Fortaleza, Ceará), José Jackson Coelho Sampaio afirmou: “Nós somos, apenas, receitadores de psicotrópicos do CEME, prescrevedores de eletrochoques, dependências e solitarizações”.

Quando profissionais da medicina se reconhecem “receitadores de psicotrópicos”, da mesma forma como o foram os missionários europeus em sua relação com os povos nativos de outras partes do mundo, apenas desmitificam suas próprias funções.

Sendo a doença mental conseqüência da miséria social, ao diagnosticá-la, ao medicar o paciente e determinar sua internação, o psiquiatra alimenta as causas dela, doença mental, enlouquece de vez o doente, já fisicamente enfraquecido pelo trabalho exaustivo, pela fome, pela inacessibilidade ao lazer. José Jackson escreveu mais: “Caso nosso grupo social permaneça como está, daqui a pouco a mais lucrativa indústria será a da loucura”.E conclui o ensaio: “Ou acabamos com as raízes da loucura, agindo de uma maneira objetiva e revolucionária, ou a loucura acabará por nos transformar num mundo de alucinações e delírios, paixão e morte, som e fúria, choro e ranger de dentes – espectro de mundo”.

Porém a psiquiatria não pode ser confundida com determinada prática psiquiátrica. Falamos daqueles médicos que, em conluio com a direção da empresa, a pretexto de curar o alcoolismo, por exemplo, receitam drogas ao paciente e terminam fazendo desenvolver nele doenças mentais incuráveis. Livra-se, assim, o patrão do trabalhador de baixa produtividade, espécie de animal de carga já sem préstimo. Ganha a previdência estatal mais um dependente.

E onde fica o técnico da psiquiatria? Recebe o pagamento pelo serviço prestado. Mas, se tem consciência da mesquinhez de sua função, pode perfeitamente abandoná-la, sem renunciar à sua ciência.

Aos padres, para se redimirem de seus crimes, cabia cuspir na coroa do rei, queimar a batina, pintar-se de urucu e desferir flechas sobre a soldadesca branca. Ou nem precisavam desnudar-se, como o fazem alguns deles.

A polícia, instituição repressora por excelência, ostenta o emblema de guardiã da segurança pública, mas aos seus servidores não resta outra opção senão abandoná-la, se não quiserem continuar exercendo a função de carrasco.

A discussão que emerge da leitura do romance Veias e Vinhos, todavia, não chega a ser esta. O livro não trata dessa desmitificação, tema mais ideológico do que político. Não vai tão a fundo, permanecendo na crítica à prática da ideologia da repressão. Não condena a polícia enquanto instituição ideologicamente repressiva, mas enquanto instituição afastada de sua função principal. Não aborda a questão essencial, ou seja, a de que esse afastamento não é ocasional ou característica desse ou daquele país. A polícia, se comete erros, se pratica injustiças, se encarcera e tortura inocentes, se escamoteia os crimes praticados por seus servidores, não o faz apenas aqui e ali, dependendo do grau de corrupção de seus quadros, mas por sua própria natureza. A segurança por ela perseguida é a que garante a sobrevivência do sistema.

Assim, cometida a chacina que dizimou a família de Matheus, com exceção da pequenina Ana, à polícia cabia encontrar o criminoso e entregá-lo à Justiça, sobretudo porque o crime alertou a população. Para que o mito não se desfizesse, urgia capturar o criminoso. Contudo, como fazê-lo, se o facínora é policial de alto escalão? Surge, então, a necessidade de se encontrar um bode expiatório.

Tenha se servido Miguel Jorge de fato verídico, para a partir dele elaborar a história, tenha imaginado tudo, não interessa nem ao leitor nem ao crítico. Na verdade, a clássica figura do bode expiatório escamoteia a verdadeira face da polícia e da Justiça.

Ao escrever Veias e Vinhos, o romancista seguramente pisou nos calos da instituição polícia. No entanto, terá despertado o leitor para o subterrâneo da repressão, tal como o fez aquele filme do cidadão acima de qualquer suspeita? Aliás, o próprio título tocava a chaga encoberta, o mito.

O grande mérito do romance de Miguel Jorge está na sua elaboração, na caracterização dos personagens, do ambiente, do tempo em que é narrada a história. A figura de Ana, por exemplo, aparece como uma das mais exuberantes de toda a literatura de personagens infantis, sobretudo porque criança de berço, sem vocabulário ainda. O romancista consegue transformá-la em personagem significativa, de força, utilizando o monólogo interior, numa descoberta excepcional para a literatura. Ana e Mário, seu irmão adolescente, se mostram como os personagens mais firmemente criados por Miguel Jorge. Além deles, as figuras de Matheus, Antonia, Pedro e Altino da Cruz aparecem nitidamente no enredo.

Veias e Vinhos é, assim, realmente um retrato brasileiro, pois elaborado a partir de personagens e ambientes brasileiros. Nesse aspecto, um romance de combate também. Seria, porém, ufanismo às avessas chamá-lo de retrato brasileiro, apenas por narrar a história de um crime hediondo e suas conseqüências.

A figura do capitão, grotescamente pintada em alguns capítulos, não deixa de ser semelhante à de qualquer policial, por sua truculência, sua imponência, seu poder. Sendo caricatura, talvez por isso deixe de ser o personagem principal que é. Encarnação do diabo, causador de toda a trama infernal que levou à morte, à prisão, à tortura, à loucura tanta gente, aparece sem alma, sem a aura de sua função. Ao leitor, apresenta-se como um personagem satânico. Esse satanismo, entretanto, não é representado como conditio sine qua de sua função, como se o inferno fosse obra de um satanás. Na verdade, o inferno mitológico existe não por obra de diabos. Pelo contrário, estes se criam para povoar aquele. Da mesma forma, a Terra não existe porque existe o Homem. Pelo contrário, este é produto dela.

Por silogismo, dir-se-ia: Miguel Jorge inverteu os papéis. Um capitão do diabo teria sujado de sangue o nome da polícia e da Justiça, quando, na verdade, simplesmente se excedeu na prática da repressão. Insultado – e é crime insultar um policial, sobretudo o de alto escalão – restava punir o insultante, o criminoso Matheus. E o puniu como lhe pareceu melhor. Puniu como policial. Sem cometer crime algum, segundo sua compreensão do mundo.


* Escritor cearense

Nenhum comentário:

Postar um comentário