quarta-feira, 18 de junho de 2014

A navalha da morte

* Por Anair Weirich
                   
Largou a navalha e observou a barba bem feita. Alisou os maxilares, observou os olhos encovados na face, e concluiu que realmente estava velho. Perdido nos pensamentos, viu que eram os sulcos profundos que dificultavam o andar da navalha. Esta só deslizava com presteza nas bochechas cansadas de sol onde havia menos rugas. É... tinha envelhecido, mas os sonhos continuavam lá, escondidos atrás do rosto cansado. Já havia o barbeador elétrico, mas aquela navalha contava dos anos de luta, das horas de parar um pouco com a lida da roça. Era bom tê-la junto nos fins de semana. Era muito bom, concluiu ele. Até mesmo o pequeno espelho retangular de moldura cor laranja diziam-lhe que tudo ali era antigo como ele. Um pequeno mundo retangular refletindo os dias. A espuma produzida pelo sabonete desvanecera-se na pequena bacia de alumínio que repousava sobre o aparador de madeira, calçado por um apoio em forma de L, pregado na parede externa do corredor da casa. Ali acontecia a higiene da família, desde lavar as mãos, a louça, até fazer a barba. Secou bem as mãos com a toalha gasta e gastou o resto dos minutos pensando no sabonete que estava novamente no fim. Pensou que estavam no fim não só o sabonete, mas a farinha, o açúcar... o tempo também estava no fim. Pensou no olhar súplice da esposa, que passava uma mensagem de pedido de desculpas, pelos oito filhos em idade escolar. Eles precisavam de mais comida na mesa e mais materiais de higiene. E mais material para atender o pedido da diretora da escola. Ao redor do fogão e do tanque, a vida dela acontecia. Sempre com um filho mais novo nos braços, a embalar a esperança num amanhã melhor. Os anos 80 estavam ao meio, mas o tempo estava mesmo no fim. Dali a alguns anos, ele também teria a palavra oitenta em sua vida. Nas costas, para ser mais preciso. Mas até lá, os filhos, se Deus quisesse, estariam encaminhados na vida. Por enquanto, a vida era carroça, roça, arado, geada, e muita lenha lascada pelo machado de cabo também lascado pelo tempo. Levantava com o primeiro cantar do galo e só ia dormir depois dos causos com o vizinho mais próximo, quando colocavam as impressões do dia a dia embalados pela cuia de chimarrão. Quando não podia ir era como se faltasse o arremate do dia.

Era o famoso serão ou filó no lugar da televisão dos dias de hoje.

Nada era escrito, mal viam um lápis na frente, mas tudo era muito bem registrado em suas memórias. Às vezes, durante os causos, aconteciam as contradições, mas era um jeito de passar o tempo. Que se danassem as datas precisas dos acontecimentos. Passavam os invernos, vinham os verões, as novidades chegavam e iam embora; mas certas coisas, como a navalha de barba, mantinham-se inalteradas ao longo dos anos. Não havia por que trocar.

As galinhas no pátio é que eram recicladas, cada uma com sua vez na velha panela de alumínio, já sem cabo e gasta pelo tempo; entortada por mãos fortes que areavam tudo que vinha pela frente. De fato, as mãos da esposa eram fortes. Tão fortes, que conseguiam segurar a vida daquele lar repleto de dias, pela faina diária. E de esperança, muita esperança, claro.

A junta de bois recebia os laçassos do dono de acordo com o humor do dia. A mesma coisa com a esposa e os filhos, no que se referia ao humor. Com eles, os laçassos vinham em forma de palavras. A mesma coisa com a lida na terra. Ele dava um xingão ou uma palavra mais amena. Tudo de acordo com o humor do dia. Mas o caráter íntegro o denunciava, através dos negócios que fazia e do comportamento com a família. Tudo tinha de andar por caminho reto, desde o comportamento das crianças arteiras, até as notas no boletim dos mesmos.

Arqueado pelos seus 83 anos, já velho mesmo, o pulmão estourado pelos anos de cigarro, filhos já grandes e encaminhados na vida como queria e sonhara, restava-lhe a lembrança das manhãs de geada com a carroça rodando sobre ela. E a geada nos cabelos eram o testemunho que estava mesmo no fim.

Já não tinha força para tratar os porcos, nem surrar os bois preguiçosos na canga. Muito menos para carnear o gado na invernada.

2008 engoliu seu último suspiro, numa noite gelada de julho. Cortado pela navalha dos anos. Aparado pela navalha da morte. Tal qual a navalha que lhe aparava a barba...

* Escritora de Chapecó/SC


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