quarta-feira, 21 de maio de 2014

Ruínas sem rimas

* Por Paulo Clóvis Schmitz

O poeta Marco Vasques lança às 19h de hoje na Fundação Badesc, em Florianópolis, o livro “Anatomia da Pedra & Tsunamis”, que completa a chamada Trilogia das Ruínas, que já contava com “Elegias Urbanas” (2005) e “Flauta sem Boca” (2010). O tom elegíaco é o mesmo, e os poemas, escritos em apenas um dia, reverberam a tragédia do terremoto que matou mais de 200 mil pessoas no Haiti, em janeiro de 2010. Contudo, como diz o poeta, apesar dessa relação não há compromisso com o tema, com o fato, por mais que ele seja dolorido. Para ele “não é função da literatura, ou de qualquer arte, informar, ensinar ou propor visões morais”. O livro é ilustrado por Carol Silva e tem o prefácio de Rubens da Cunha.
   
Quando, como e em quais circunstâncias escreveu este livro? Foi um processo natural, que fluiu bem, apesar do tema, ou foi doloroso, justamente por isso?

O livro foi escrito praticamente num dia só: 12 de janeiro de 2010. Eu já vinha estudando as questões geopolíticas do Haiti por meio da leitura do filósofo Noam Chomsky. O desastre potencializou a escuta poética que já vinha trilhando. Claro que arte alguma tem compromisso com o tema. Um tema nunca precede a existência de uma obra de arte. Antes de tudo se faz necessário a busca da linguagem, a busca de uma voz própria. Mas parece que o papel do poeta, conforme afirma Ferreira Gullar, é vigiar a linguagem prosaica da vida e transformar algo potente capaz de modificar, de alterar o leitor. Um escritor minimamente sério sabe que não é função da literatura, ou de qualquer arte, informar, ensinar ou propor visões morais. Toda grande arte transcende questões morais.

Em que medida foi afetado pelo terremoto no Haiti, tema que perpassa o livro? A tragédia impactou-o pela dimensão ou pelo drama humano, ou ainda pela sensação de impotência em relação a interferir no destino da população afetada?

“Afetado”. Sim, o livro é antes de tudo um ato de afeto. Não é um registro social, político ou jornalístico. É uma espécie de geografia afetiva. Uma cartografia da impotência. No entanto, ao mesmo tempo em que se pode ler sob a perspectiva histórica, sobre uma poética que tem como princípio um fato, o livro pode ser desconectado completamente do evento natural e ser lido sem que o leitor saiba disso. Ele entrará em outra camada de leitura que o livro propõe. Espero que este seja o mérito da obra, ou seja, o de possibilitar múltiplas camadas de leitura.

Seu trabalho nunca é marcado pelo otimismo ou pelo descompromisso. Como se coloca diante da função do poeta, do artista?

Veja, o que você coloca é muito importante, porque pode parecer que me contradigo, já que toda a minha obra é marcada por um tom cinza do mundo. Brecht dizia que todas as cores são cinzas. Penso que esta é uma das metáforas mais bonitas do mundo. Estou inserido num mundo, escrevo a partir dele. Nenhum escritor consegue se distanciar totalmente, como se fosse um robô, e daí escrever uma obra. Se escritura é carne, como atesta o filósofo Cioran ou como dizia Graciliano Ramos, um escritor escrever sempre sobre si mesmo, parte do mundo e do pensamento de mundo de um escritor aparece em sua linguagem, ainda que disfarçada. Ocorre que eu não disfarço meu desencanto pelo mundo. A função do poeta? A função do poeta é fazer o melhor poema possível com a linguagem e o material humano que sua época apresenta. É igual a de um pedreiro. Fazer a melhor casa com os instrumentos, materiais de que dispõe, dominando-os tecnicamente.

Você transita pela literatura, pelo teatro, também atua como crítico e é funcionário do governo. Como concilia todas essas atividades e qual delas, afinal, é mais prazerosa?

Não existe um escritor que não tenha o sonho de viver de sua escritura. Mas o mercado absorve uns, ignora outros. Atuar em várias funções não é nada novo. Molière servia à corte, escrevia suas peças, atuava, dirigia e fazia muito mais. Shakespeare fazia o mesmo. Claro, por favor, não vai aqui nenhuma comparação. Tenho noção exata, como crítico que sou, do tamanho da literatura que estou criando. Não sou um poeta genial, não serei um poeta de matriz, tenho absoluta certeza disso, mas tenho consciência de que terei um cantinho reservado para a minha voz, assim espero, na literatura de nosso país. Se pudesse, viveria da literatura e da crítica teatral, mas isso está cada vez mais improvável. Trabalho para o estado. E como trabalhador do estado, portanto, das pessoas, tento ajudar meus iguais a desenvolverem seus projetos. Faço com muito prazer o Suplemento Cultural de Santa Catarina [ô catarina]. Mas é na escritura que tenho o meu território de prazer, combate e dor.

Sabe que fazer poesia é um tanto ingrato, porque é um gênero que tem poucos leitores e compradores. No entanto, como tantos outros, continua produzindo. O que o motiva a prosseguir nessa lida?

Como bem assinalou Rilke, um poeta só deve continuar a escrever poesia se isso realmente for essencial em sua vida. Há quem defenda a tese de que o que salva a poesia é justamente o fato de ela não se submeter à lógica do mercado. Há também quem defenda o contrário. Quanto a mim, ainda que fosse o último homem do mundo, gostaria de exercer o olhar poético (ainda que desencantado) sobre o mundo e fazer meus poemas.



Paulo Clóvis Schmitz é jornalista, Florianópolis / SC

Nenhum comentário:

Postar um comentário