sexta-feira, 30 de maio de 2014

Cuidado no tempero

* Por Cecília França


Beth imaginava aquele encontro há pelo menos dois anos, desde que aquele par de olhos matadores entrara no escritório e em sua vida. O dia passara voando, embalado por sua ansiedade, e nem lhe dera tempo para uma escova nos cabelos. Fazia agora a última revisão dos itens que garantiriam o sucesso da noite – ao lado de seu pretinho básico.

No canto da mesa, o vinho tinto aguardava pelo prato principal. Claro que ela havia pesquisado as preferências de seu candidato e preparara o camarão quase na hora marcada para garantir que estaria com sabor de fresco. Soubera que Carlos era daqueles que se deixavam fisgar pelo estômago.

A dez minutos da hora marcada, soou a campainha. Ela já ia correndo para a porta quando se notou de chinelos e deu meia volta rumo ao quarto. Não se lembrava de ter sentido agonia igual nos últimos vinte anos de vida! Ainda teve tempo de olhar-se mais uma vez no espelho e ficou satisfeita com o que via. Seu sorriso habitual estava ainda mais escancarado.

Abriu a porta de maneira paciente. Carlos mostrava-se elegante – como ficaria até mesmo de bermuda e chinelos. Vestia paletó marrom por sobre a camisa branca semi-aberta, traje que combinava perfeitamente com seus olhos de mel. Foi ele quem disse "oi" e beijou-a na face levemente.

Convidou-se a entrar enquanto Beth ainda sorria tentando, sem sucesso, não parecer boba. Ele já sentara no sofá quando ela ofereceu-lhe um drinque ao som de Frank Sinatra, o que o deixou extasiado – sim, ela investigara a fundo a vida dele. Conversaram por mais de meia hora sobre seus relacionamentos passados, os boatos do escritório, seus hábitos, até que chegaram ao fatídico momento de silêncio, que ele quebrou confessando-lhe sua atração por ela.

Beth quis pular o jantar e partir para a sobremesa, mas manteve-se quase inabalável e pediu-lhe que sentasse à mesa. Ela já havia pegado o saca-rolhas quando ele ordenou que deixasse a parte braçal com ele. Como ela previa, era um perfeito cavalheiro.

Sua salada fez o sucesso aguardado e era hora de arrematar a boa impressão com o prato principal. Salpicou cebolinha sobre o camarão com batatas e pousou a panela na mesa. Carlos fez questão de servi-la primeiro e ela pediu que provasse antes e lhe desse o veredicto. Ele a encarava enquanto levava o garfo à boca insinuando um sorriso safado. Abocanhou o camarão com voracidade mantendo o olhar fixo no dela.

Ela já estufava o peito à espera dos elogios quando a expressão de satisfação no rosto de Carlos foi esmorecendo. Ele mastigava cada vez mais devagar e por fim manteve a boca estática; seu olhar agora estava baixo, colado no prato. Ela tinha a impressão de que ele engasgara. Perguntou-lhe o que havia de errado enquanto ele secava a taça de vinho e apontava para o paletó. Rapidamente ela provou o camarão e entendeu. O gosto era de puro sal.

Carlos, a essa altura, tossia continuamente e sua face era de um vermelho rubro. Ela começou então a desferir desenfreados tapas em suas costas sem ouvir suas súplicas, entre uma tosse e outra, para que parasse. Só aí ele conseguiu, enfim, tirar um comprimido do bolso do paletó, tocou-lhe garganta adentro e tomou mais vinho.

A crise passava aos poucos enquanto Beth tagarelava dizendo que não entendia como aquilo acontecera e mentindo que camarão era sua especialidade, que nunca errara na cozinha, e tal. Falava tanto que mal viu quando Carlos pegou seu paletó e retirou-se, ainda tossindo, agora mais espaçadamente.

Beth investigara suas preferências, porém, esquecera-se de especular sua ficha médica, que diagnosticava hipertensão. Diante do fiasco, pegou-se sozinha, em pé na sala, olhando para a salmoura que se assemelhava a camarões e formulando um método infalível para evitar outra gafe. Seu próximo primeiro encontro seria em um restaurante.

* Jornalista

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