sábado, 31 de maio de 2014

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 8 anos, dois meses e três dias de existência.

Leia nesta edição:

Editorial – Infinito e eternidade.

Coluna No Sopro do Minuano – Rodrigo Ramazzini, conto, “Tempo perdido”.

Coluna Direto do Arquivo – Fábio de Lima, crônica, “O passado nunca volta”

Coluna Clássicos – Zilá Mamede, poema, “Corpo a corpo”.

Coluna Porta Aberta – Urda Alice Klueger, crônica “Dra. Adair a grande dama de Canoinhas”.

Coluna Porta Aberta – Clóvis Campêlo, crônica, “A imagem é tudo?”.


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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com “Aprendizagem pelo Avesso”Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
“Um dia como outro qualquer” – Fernando Yanmar Narciso.
 “Cronos e Narciso” Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal” – Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk.As portas sempre estarão abertas para a sua participação.



Infinito e eternidade


O infinito e a eternidade são dois conceitos muito citados, mas não compreendidos por ninguém. Não há como compreendê-los. Um, refere-se ao espaço, tão extenso que não teria início e nem fim. Você consegue entender, mas entender mesmo algo assim? Claro que não, ora, ora. Já a eternidade tem a ver com tempo. Como o infinito, nunca começou e jamais terminará. Como conceitos desse porte podem caber em mentes limitadíssimas, como as nossas, de dimensões ínfimas e, sobretudo, perecíveis? Não cabem. Sempre que quero exercitar o cérebro à exaustão, antes de empreender algum novo projeto literário, medito nisso. Não chego a nenhuma conclusão, claro. Mas considero essa atividade insuperável exercício mental.
  
Andei comparando as opiniões de alguns gênios a esse propósito; Fernando Pessoa, por exemplo, aposta em nossa impossibilidade de entender esses conceitos. Concordo com ele. O notável escritor dos heterônimos escreveu: “Se o nosso espírito pudesse compreender a eternidade, ou o infinito, saberíamos tudo. Até podermos entender esse fato, não podemos saber nada”. Os cientistas, todavia, acham que entendem os dois conceitos. E negam a existência de ambos. “Determinam”, por exemplo, os limites do universo, que volta e meia são forçados a revisar, sempre que os telescópios alcançam mais longe. Não faz muito, afirmavam que o ponto final dessa imensidão absurda situava-se a oito bilhões de anos-luz. Atualmente, estenderam-no a por volta de treze bilhões de anos-luz. Tolice. Admitam que isso não passa de mero “chute”, ora bolas.

O pitoresco é que, quando você questiona essa delimitação, é olhado com menosprezo, como se fosse o suprassumo da ignorância. Esses cientistas recorrem a complexos cálculos matemáticos, portanto lógicos, para fundamentarem suas conclusões. Mas quem garante que a lógica rege o universo? Ou, pelo menos, que se trata desta “lógica” humana, e não de outra, infinitamente mais complexa e misteriosa? Assim como a noção de infinito, cuja existência os cientistas negam, também a eternidade é negada. Parece-lhes absurda. E para rebater o que lhes parece sem sentido, recorrem a outro absurdo ainda maior, o tal do “Big Bang”.

Afirmam, com a convicção de quem tivesse testemunhado todo o processo, que tudo o que compõe o universo – galáxias, estrelas, planetas, cometas, meteoros etc,etc,etc – estava tão comprimido que sua dimensão era equivalente a uma ínfima cabeça de alfinete ou algo menor. A pressão de tamanha compressão era, no seu entender, absurda de tão elevada. Era tanta, que “explodiu” espetacularmente, dando origem a tudo o que existe. Minha mente cartesiana teima em não aceitar essa teoria, que atualmente atinge foros de “verdade”. Ora, ora, ora.

Algumas coisas os adeptos dessa “explicação” das origens de tudo o que há, nunca conseguiram (e duvido que consigam) explicar. Por exemplo, onde estava essa matéria sumamente concentrada e comprimida antes do dito “Big Bang”? Estava, afinal, em algum lugar, em algum espaço. E quando esse aglomerado tão comprimido começou a se formar? E antes da sua formação, o que havia? Não, eles não explicam coisíssima alguma com sua teoria. Somente complicam as coisas já tão complicadas por si sós. Sobre a impossibilidade de entendimento do conceito de infinito, o escritor português, Almeida Garrett, tem uma teoria que até faz sentido. Escreveu: “A culpa é talvez da palavra, que é abstrata demais. Saúde, riqueza, miséria, pobreza e ainda coisas mais materiais, como o frio e o calor, não são senão estados comparativos, aproximativos. Ao infinito não se chega, porque deixava de o ser em se chegando a ele”. Querem coisa mais lógica?

José Saramago, por seu turno, nega a eternidade. Raciocina, claro, em termos humanos, cuja vida tem fim e não raro até precocemente. Racionalmente, não conseguimos conceber algo ou alguém que nunca teve início e jamais terminará. “Como?!”, perguntamos perplexos, mas com uma infinidade de exclamações, quando pensamos a respeito. Sim, como?!!!! Saramago escreveu: "A eternidade não existe. Um dia o planeta desaparecerá e o Universo não saberá que nós existimos". Bem, saber, saber, não saberá mesmo. Mas a eternidade que não existe é a humana. Outras... Não ponho a mão no fogo.

Albert Einstein, cuja Teoria da Relatividade revolucionou as ciências, acreditava em infinito. E, para ele, duas coisas tinham essa característica: o universo e a estupidez humana. Claro que esta última se tratava de metáfora do genial, e também bem-humorado cientista. Para reforçar o efeito de sua observação, Einstein aduziu: “Mas, no que respeita ao universo, ainda não adquiri a certeza absoluta”. Ou seja, deu a entender que certo, mas certo mesmo, estava somente de que a estupidez humana era infinita. Não sei se ela não tem fim (provavelmente terá, se ou quando a espécie humana se extinguir), mas que é ostensiva e que incomoda demais, disso não há como duvidar. Voltarei oportunamente ao tema.

Boa leitura.


O Editor

Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk.
Tempo perdido

* Por Rodrigo Ramazzini

Quando o vizinho do Romerito apareceu na rua pilotando uma Kawasaki Ninja, ele que espiava pela janela escondendo-se atrás da cortina, prontamente, teceu o comentário para a esposa:

- Olha lá o Júlio se aparecendo de moto nova. É um palhaço mesmo! Aposto que gastou um dinheirão naquilo... Onde já se viu gastar um monte de dinheiro numa moto, né? Tem gente que não tem nada na cabeça mesmo...

A esposa retrucou com azedume:

- Foi com o teu dinheiro que ele comprou? Não, né? Então, fica na tua!

O conselho da esposa não foi seguido por Romerito, que ao avistar a vizinhança admirando a moto de Júlio, que fazia apenas dois meses que se mudara para o bairro, resolveu se juntar ao grupo. Lá chegando, aproximou-se da roda de pessoas que contornava a motocicleta e logo lascou:

- Bonita moto, Júlio! Porém, aposto que pagou um carro forte de dinheiro por ela, não?
- Ela é bonita mesmo, Seu Romerito! Barata realmente não foi... Mas, era um sonho de consumo que eu tinha... E realizar um sonho não tem preço!
- Imagino... É que eu fico pensando quantas coisas melhores se podia comprar com esse dinheiro, não?
- O senhor até parece um pai dando sermão, Seu Romerito! Até podia mesmo... Mas, eu escolhi comprar uma moto...
- Eu acho que rasgaste dinheiro!
- Eu já acho que fiz um baita investimento!
- Quanto ficares velho, certamente, este dinheiro te fará falta...
- Pode ser que sim, Seu Romerito! No entanto, tenho certeza que chegarei à velhice muito mais feliz por ter realizado os meus sonhos quando novo... Diferente de certas pessoas...
- Isso nós veremos! Veremos!
- O senhor quando era novo conseguistes comprar tudo que sonhara?
- Isso não vem ao caso agora...
- Pelo jeito não... Está com inveja de mim, Seu Romerito?
- Ficastes maluco, Júlio? Por que eu teria inveja de ti, hein? Só porque comprastes uma moto? Estás maluco! Isso sim...
- Eu acho que no fundo, quando jovem, o senhor era louco para ter uma dessas e não conseguiu comprar... E agora projeta esta frustração em mim ao avaliar a minha compra. É isso?
- Era só o que me faltava! Depois de velho ter que ouvir isso...
- Eu pego o capacete ali e damos uma voltinha. Assim o senhor ameniza essa frustração. Queres? Há! Há! Há!
- Não! Muito obrigado. Não respeitam mais os mais velhos mesmo! Eu me vou embora para casa...
- Se trocares de ideia é só avisar, viu? O convite está em pé. Há! Há! Há!
- Tu vais é te matar com essa moto, Júlio! Isso sim! Olha que estou te avisando...

Nos dias que se sucederam a distração de Romerito foi espalhar pela vizinhança a sua opinião sobre a aquisição de Júlio e os riscos à vida que uma moto representava.

- É um absurdo gastar um dinheiro destes numa moto! Sem falar que tu podes te matar a qualquer hora com este trânsito maluco de hoje em dia. Olha... É muito ser cabeça de vento!

A profecia de Romerito aconteceu nove dias depois. Júlio se envolveu em um acidente, chocando-se com a moto frontalmente em um carro, numa movimentada avenida da cidade. Entrou em coma e perdeu muito sangue, o que gerou uma mobilização da vizinhança de Júlio para a doação com o objetivo de repor o estoque do hospital. Até Romerito, mesmo que a contragosto, foi participar da campanha, entretanto, não deixou de se pronunciar sobre o acidente:

- Eu falei que isso iria acontecer! Eu falei...

O grupo de vizinhos aproveitou o dia da doação de sangue para visitar Júlio no hospital. Ele era órfão de mãe e os parentes mais próximos moravam em uma cidade distante a cerca de 500 km. E, foi justamente quando a vizinhança fazia a visitação que apareceu uma tia de Júlio, depois de viajar longas horas de ônibus. Ela chamava-se Glória. Cumprimentou o grupo e fixou o olhar por alguns instantes nos olhos azuis de Romerito, mas não teceu nenhum comentário naquele momento.
Encerrado o horário de visita e a consulta aos médicos sobre o estado de Júlio, o grupo saía pelos corredores do hospital quando Glória chamou Romerito pelo nome. “Como ela sabe o meu nome?”, perguntou-se.

- Tu és o Romerito, né?
- Sim! Como sabes?
- Podemos conversar um pouco? Eu te explico...
- Desde que não demore muito...
- Começarás a ver o tempo de outra forma depois da nossa conversa...
- Vamos ali tomar um café...

Na cafeteria.

- Tu continuas com o mesmo olhar da juventude, Romerito?
- Não estou entendendo. De onde me conheces?
- Não estás lembrado de mim? Eu sou Glória. Tia do Júlio e irmã da Angélica...

Quando o nome Angélica soou no ouvido de Romerito, um mar de lembranças emergiu em seus pensamentos. Angélica fora namorada de Romerito na juventude e o largara para fugir com um motociclista da cidade, que tinha uma moto muito mais potente que a sua à época. Depois de tantos anos, retomar este assunto mexeu com Romerito. Ele fechou os olhos, respirou fundo, ficou em silêncio por alguns segundos e, só então, readquiriu as forças para continuar a conversa:

- Glória... Glória... Como não a reconheci, hein? Você mudou muito com o tempo...
- O tempo não foi generoso comigo como foi para ti, Romerito! Estás com a mesma fisionomia da juventude... Quando foquei o olhar em ti logo o reconheci...
- Que coisa a gente se reencontrar depois de tantos anos... Que coincidência da vida, né?
- Eu não acho que seja coincidência.
- Como assim?
- Acho que é destino mesmo!
- Não entendi?
- Eu te chamei aqui para te contar algo. Acho que chegou a hora...
- Estás me assustando!
- A Angélica morreu...
- Pode parar por aqui se me chamaste para tentar defendê-la após esses anos todos... Eu amava aquela mulher! A mágoa que ela me deixou nunca cicatrizará!
- Não é isso...
- Então, o que é?
- Terás que ser forte!
- Fala logo, Glória!
- Romerito: o Júlio é teu filho!
- Como é que é?
- Isso mesmo! O Júlio é teu filho. A Angélica morreu guardando este segredo. Só eu sabia...
- Tu estás de gozação com a minha cara! Que absurdo isso que estás me contando! Que mentira! Mentirosa! Mentirosa!
- Não é mentira, Romerito! Quando a Angélica te deixou ela estava grávida de dois meses do Júlio...
- Isso não pode ser verdade! Isso não pode ser verdade! Eu não vou engolir esta história assim! Ela sumiu no mundo! Vai se saber o que fez por aí! Eu quero DNA!

Transtornado, Romerito deixou a cafeteria e retornou para casa. Contou o ocorrido para a esposa e passou a maior parte do tempo dos dois dias seguintes trancado em seu escritório. Quando saiu de lá foi para voltar ao hospital.

No hospital.

Era uma tarde fria de quinta-feira. Apesar do horário de visita no hospital, o quarto de Júlio, que permanecia em coma, estava vazio. Romerito entrou e em pé ao lado da cama ficou fixamente olhando-o por alguns minutos. Então, puxou do bolso da jaqueta uma velha foto, em preto e branco, em que ele estava na sua moto, vestindo uma jaqueta de couro preta e com o capacete na mão. Como passageira, trajando um vestido de Poá, a mãe de Júlio. Romerito olhou-se jovem na foto e, inevitavelmente, comparou-se a Júlio. Os longos cabelos iguais, os olhos azuis, o formato do queixo e a paixão da juventude por motocicletas não deixavam dúvidas. Eis que apareceu Glória no quarto e completou a constatação:

- Tu ainda achas que precisas de DNA, Romerito?

Três semanas depois, Júlio saiu do coma e em seguida foi liberado do hospital. Mandou consertar a moto, que ficou danificada em alguns pontos com o acidente. Deverá ficar pronta amanhã e, se não chover, ele e o pai Romerito irão dar uma volta juntos, em busca de recuperar o tempo perdido...


* Jornalista e contista gaúcho

O passado nunca volta

* Por Fábio de Lima

   
Não sei qual motivo me levou olhar pela janela naquela manhã chuvosa. Eu não tinha que trabalhar. Era domingo. Não tinha compromisso algum. Mas a cama não bastou. O sono não foi pleno. Então, levantei e caminhei, até a janela, sobre as pontas dos pés. Bocejei e avistei, no outro lado da rua, uma garota linda, aparentando 19 ou 20 anos. Não parecia modelo, tinha uma beleza diferente. Parecia um anjo. Ela esperava o táxi com um guarda-chuva onde se lia a palavra sol. Em pouco mais de 2 ou 3 minutos seu táxi chegou e ela se foi. Nunca mais a vi. Nunca soube seu nome.

Eu estava terminando o segundo grau. Estava no terceiro ano colegial e ela havia acabado de ingressar no colégio para fazer o primeiro ano. Era loira – olhos azuis – corpo de mulher e jeito de menina. Sorria bastante. Parecia uma garota feliz e simpática. Logo descobri que seu nome era Amanda. Nunca falei com ela. Minha timidez não permitiu. Sai da escola e fui para a faculdade. Jamais vi Amanda novamente.

Na oitava série a gente sempre se acha o máximo. Comigo não foi diferente. Havia, na sétima série, uma garota morena, de cabelos pretos, corpo e rosto muito bonitos. Eu me achava Don Juan, então comecei a olhá-la muito nos intervalos das aulas e no recreio. Comecei a paquerá-la. Fazia isso, todos os dias, embora nunca me aproximasse dela. Um belo dia ela se aproximou de mim e puxou assunto. Conversamos – demos algumas risadas juntos. Ela, de vez em quando, passava as mãos nos cabelos e deixava à vista, para mim, uma aliança na mão esquerda. Só conversamos uma vez. Nem lembro mais o seu nome.

A festa era de um amigo de um amigo meu. Eu estava cansado e com vontade de ir embora. De repente, altas horas da noite, chegou à festa uma prima do aniversariante. Foi simpática comigo e com várias outras pessoas que estavam lá. A mulher era um deslumbre, tamanha a beleza. Eu estava entediado e não via a hora de arrumar uma carona para ir embora. Como ninguém estava muito interessado em ir embora naquele momento, fui para a pista de dança. Fui dançar sozinho. Mas a moça de nome Graziela me seguiu até a pista de dança. Dançamos. Beijamos um ao outro. Fomos embora juntos. Passamos a noite juntos. Pela manhã nos despedimos e nunca mais tive notícias dela.

Trabalhávamos juntos. Depois do expediente gostávamos de namorar um pouco – mesmo ela sendo casada. Acho que era só carinho ou só sexo – não que julgue qualquer dessas duas opções como algo sem importância, mas era um fator isolado que nos unia. Talvez tenha sido um ano nesse chove e não molha. Talvez tenham sido dois. Nunca pensamos em ficar juntos para sempre. Ainda lembro do nome dela – mas ele não acrescenta nada a este texto. Faz muitos anos que não a vejo. Espero que ela esteja bem.

Eu havia acabado de entrar na adolescência e ainda estava aprendendo a diferença entre ficar e namorar. Um amigo e sua ficante queriam ir juntos ao cinema – mas havia uma prima da menina, vinda do litoral, chamada Angélica, que teria que ir com eles – já que passaria todo o final de semana em São Paulo, visitando aos tios. Meu amigo disse para eu acompanhá-los ao cinema. Aceitei. Duas horas antes do horário de irmos para o cinema o telefone tocou e meu amigo avisou que o pai de Angélica falecera afogado numa praia. Portanto, o cinema estava cancelado. Nunca conheci Angélica.

Pelas minhas contas (nunca fui bom em contas) estou com 29 anos, 09 meses, 23 dias, 5 horas e 17 minutos de idade. E não importa se sou velho ou novo. Se tenho uma vida interessante ou não. Se o meu futuro me reserva muitos outros anos de vida ou se morrerei antes que este texto seja lido por alguém. Pouco importa também se este texto é bom, ruim ou mais ou menos. O único fato relevante e inquestionável para ser dito, aqui, é que o passado nunca volta.

*Jornalista e escritor ou “contador de histórias”, como prefere ser chamado. Atua como repórter freelancer para o jornal Diário do Comércio (SP) e é diretor de programação da Cinetvnet (TV pela WEB). Está escrevendo seu primeiro romance, DOCE DESESPERO.


Corpo a corpo

* Por Zila Mamede

Pasto branco
potro bravo
corpo a corpo
corre o certo
tempo incerto
de um corisco
Pasto e cobra
rosto franco
na empreitada:
febre e fogo
nesse jogo
de encontrar-se
Pasto e potro
rasto e sono
em breve trato:
rosto acorda
laço e corda
desatados
Pasto grave
tenso rosto:
cobra-cobra
se consome
na empreitada
re-presada
Pasto franco
rosto breve
fogo e risco
fome e riso
no improviso
desse jogo
Pasto bravo
potro branco
corpo a corpo:
na campina
o potro: a crina
engalanada.


* Importante poetisa nordestina do século XX
Dra. Adair a grande dama de Canoinhas

* Por Urda Alice Klueger

(Para Dra. Adair Dittrich, de Canoinhas/Brasil)

Muitas e muitas cidades não têm uma grande dama – há muitas que sequer sonham com o que pode ser isto, e eu acho que fica bastante difícil de explicar em palavras comuns o que é ser uma grande dama – grande dama é aquela pessoa que não precisa dizer nada nem fazer nada para sê-la – grande dama é alguém perceptível diretamente pelos olhos do coração, e as palavras são coisas bobas diante delas.

Então no ano que passou fui à cidade de Canoinhas/SC, lá no extremo norte do Estado, e lá estava aquela mulher inigualável a me atender. A princípio ela parecia normal, uma mulher da minha idade, médica, educada e delicada quanto tantas, cuidando para dirigir muito devagar para evitar que eu enjoasse no caminho do que queria me mostrar, conversando agradavelmente, inteligentemente, mas até aí tudo parecia normal. Levou-me ao seu lugar, onde nascera e crescera, à localidade de Marcílio Dias, e lá mostrou-me muitas coisas: a casa onde se criara (há uma sobrinha dela ainda morando lá na casa vetusta, de madeira, onde juro que deve haver fantasmas escondidos sob as escadarias e entre as paredes duplas e, portanto, pudemos entrar e conhecer a casa); as diversas outras casas de formatos e construções únicas da região, o leito da antiga estrada de ferro, a velha estação, ao lado da casa de moradia e de comércio da sua nona[1], que tantas coisas na vida ensinara à menina Adair, enquanto atendia autoridades que o trem trazia até ali, sendo a mais ilustre o presidente Getúlio Vargas; contou-me muitas coisas da Guerra do Contestado e da Madeireira Lumber, uma desgraça que aconteceu ao Brasil lá no começo do século XX, com seu Ogro chamado Paschaol Farquhar.

Canoinhas ainda é uma cidade bastante pequena, mas Dra. Adair havia decidido me dar um city-tour, e em seguida lá fomos nós para a Cervejaria Canoinhense, onde o inigualável cervejeiro Rupprecht Loeffler[2] produz cerveja e gasosa há mais de 80 anos, ele pessoalmente. Acabei ganhando uma coleção de cervejas e comprando uma coleção de gasosas, das vermelhas e das brancas, as inigualáveis gengibiras que degustaria depois, em casa. Doutora Adair contou prazerosamente como seus pais compravam, nas festas de final de ano, engradados inteiros daquelas gasosas, e como os irmão e primos dela (decerto ela também) aproveitavam para esconder muitas garrafas nos mais inacessíveis esconderijos da casa, para que sobrassem para depois – sobravam para o ano inteiro; era um nunca acabar de se achar gasosas por todo o ano dentro daquelas paredes duplas onde agora, com certeza, devem morar muitos fantasmas!

E nos dias em que fiquei lá (não só em Canoinhas, como também em Três Barras e Bela Vista do Toldo) fazendo palestras nas escolas cujos alunos haviam lido os meus livros e também participando de uma noite de autógrafos na Livraria Santa Cruz, Dra. Adair esteve todo o tempo a me acompanhar, sem contar as duas vezes em que me convidou para almoçar na sua casa. Então, aos poucos eu fui conhecendo, desvendando seus mistérios de grande dama e outros, e um pouquinho da sua biografia. Ela era médica desde os 25 anos, e já completou seus 50 anos de medicina há algum tempo atrás, o que significa que... céus, mas aquela mulher linda que parece ter a minha idade não tem a minha idade? Não, acabei por saber – aquela mulher linda e tão jovem já passava dos 75 anos! Como fez ela para se manter assim cheia de vigor, de beleza e de juventude? Penso que por conta do muito trabalho da sua vida, e de ter escolhido fazer exatamente o que gostava de fazer – mas também por ter seguido seu coração e suas convicções sem se dar trégua, e ter vivido de acordo com eles sem esmorecer. Fiquei a admirá-la silenciosamente quando, numa reunião pública onde estávamos, ouvi sua indagação para a qual ainda não se tem resposta:
- Então que faço com os vinte anos que a ditadura me roubou? Faço de conta que eles não existiram, e digo que agora só tenho 50 e tantos anos?

Grande Dra. Adair, que não permitiu que se lhe arrancassem os sonhos e ideais da juventude! Continua convivendo com eles com a mesma intimidade com que sempre viveu – nunca deixou de acreditar nas suas crenças, nunca deixou de levar muito a sério o que acha que é justo! Seria este o segredo que a tornou uma grande dama?

É bem possível e provável que sim. É, pelo menos, um dos fatores. Dra. Adair nunca transigiu, nunca deixou de perseguir os seus ideais, fossem eles os de mitigar o sofrimento alheio ou de sonhar com um mundo melhor. Nunca prestou atenção, ela, aos arautos da Apocalipse que ficaram anunciando a chegada do desânimo, a ruína dos sonhos, o fim dos tempos da esperança – única e perfeita, ficou na sua pequena cidade defendendo que o tempo de sonhar nunca se acaba, e então se tornou grande, a grande dama de lá!

Querida Dra. Adair, a grande dama de Canoinhas, que bom que foi ter tido o privilégio de conhecê-la!

Blumenau, 29 de março de 2011.

* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR


A imagem é tudo?

* Por Clóvis Campêlo

Surgida na Idade Média por uma necessidade dos pintores renascentistas de copiar com perfeição os cenários da vida real, a câmera escura terminou por evoluir para a invenção da máquina fotográfica. Nesse sentido, muito contribuíram as descobertas científicas desde aquela época.

De início, porém, a grande dificuldade era fixar as imagens fugidias e eternizá-las em qualquer suporte físico. Assim, depois de grandes experimentos e invenções, chegaram artistas e cientistas ao papel quimicamente trabalhado, que durante anos foi a moldura ideal para as imagens capturadas.

Hoje, quando as imagens foram desmaterializadas e existem ou no mundo virtual ou no espaço magnético das máquinas fotográficas atuais, tudo isso nos parecerá muito romântico.

Mas, a vida dos grandes fotográficos desde então, nunca foi fácil. Pois, além da simples documentação imagética de pessoas e acontecimentos, a eles também caberia a obrigação de personalizá-las e diferenciá-las de uma fotografia simplesmente reprodutiva.

Por si só, um simples objeto pode ter a sua imagem apreendida de várias maneiras, influenciado aí, no ato de fotografar, não só o enquadramento, como a contextualização e a bagagem de conhecimentos do fotógrafo em relação ao que documenta e à sua importância histórica ou social.

Por outro lado, a fotografia pode ser importante esteticamente ou simplesmente pelo valor documental e histórico que pode carregar nas suas informações.

Fotografar, portanto, não é simplesmente fazer com que o tempo e o espaço morram dimensionalmente contidos naquela moldura. Essa importância histórica ou estética também não dependerá diretamente da qualidade do equipamento ou da maquinaria utilizada. A sensibilidade do fotógrafo, aí, sempre será o elemento de maior importância e relevância.

Antes de chegarmos à fotografia digital, durante muitos anos usamos a fita celuloide para a obtenção de imagens. Nos anos 60, com a ideia do “make yourself”, lançada pela Kodak, as máquinas foram simplificadas e tornaram-se acessíveis a qualquer pessoa que quisesse exercitar a sua capacidade de fotografar.

Essa nova “revolução” fez com que a fotografia se popularizasse no mundo e criasse um caminho informativo de mão dupla, inverso à monopolização inicial.

Hoje, mais do que nunca, com as imagens digitalizadas e definitivamente acessíveis a todos, transformou-se a nossa percepção do mundo, tanto no que se refere ao micro quanto ao macrocosmos, bem como ao universo particular de imagens criadas ou imaginadas que cada um traz dentro da sua cabeça.

Que cada um seja definitivamente dono do seu momento decisivo!

* Poeta, jornalista e radialista, blogs:


sexta-feira, 30 de maio de 2014

Literário: Um blog que pensa

LINHA DO TEMPO: 8 anos, dois meses e dois dias de criação.. .

Leia nesta edição:

Editorial – Inconformismo salutar.

Coluna Contrastes e confrontos – Urariano Mota, crônica, “O amestrado Geraldo Vandré”.

Coluna Do real ao surreal – Eduardo Oliveira Freire, conto, “Solicitação de amizade...?”..

Coluna Porta Aberta – Alberto Cohen, poema, “Solidão e solidão”.

Coluna Porta Aberta – Cecília França, crônica “Cuidado no tempero”.

Coluna Porta Aberta – AAdailton Bastos, poema “Numa noite qualquer”.


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Livros que recomendo:

“Balbúrdia Literária” José Paulo Lanyi – Contato: jplanyi@gmail.com
“A Passagem dos Cometas” Edir Araújo – Contato: edir-araujo@hotmail.com
“Aprendizagem pelo Avesso” Quinita Ribeiro Sampaio – Contato: ponteseditores@ponteseditores.com.br
 “Cronos e Narciso” Pedro J. Bondaczuk – Contato: WWW.editorabarauna.com.br
“Lance Fatal”Pedro J. Bondaczuk - Contato: WWW.editorabarauna.com.br


Obs.: Se você for amante de Literatura, gostar de escrever, estiver à procura de um espaço para mostrar seus textos e quiser participar deste espaço, encaminhe-nos suas produções (crônicas, poemas, contos, ensaios etc.). O endereço do editor do Literário é: pedrojbk@gmail.com. Twitter: @bondaczuk. As portas sempre estarão abertas para a sua participação.


Inconformismo salutar

O conformismo foi tido e havido (e ainda é, por muitas e muitas pessoas) como uma virtude. Não é, pois, encarado como deveria ser. Ou seja, como ausência de ambição, como preguiça até de pensar, ou como omissão ou comodismo. E olhem aí uma palavrinha que sempre foi demonizada e propalada como grave deficiência de caráter, como terrível distorção de comportamento. Em sua forma extrema, sem análise ou juízo, de fato é ruim. Refiro-me à ambição. Aliás, talvez à exceção do amor, tudo o que é em excesso é condenável e deve ser evitado. Equilíbrio e moderação são as posturas permanentes de um caráter sólido e exemplar. Ambição em excesso, portanto, sem se levar em conta a própria capacidade, física, mental e espiritual, é condenável. E mais: é o caminho mais curto para profundas decepções e não raro para o ridículo, quando o ambicioso não logra satisfazê-la.

Mas, devemos nos conformar, por exemplo, com a pobreza, apregoada por muitas religiões como virtude, como uma espécie de “cruz que devamos carregar”, como expiação de um suposto “pecado original” que sequer sabemos qual é ou se de fato foi cometido? Temos que aceitar passivamente injustiças cometidas contra nós, ou ao nosso redor, a pretexto da nossa pequenez e de falta de recursos para combatê-la? Ora, ora, ora, para mim é evidente que não. O conformismo, neste caso, aceitando a priori estes males como “coisas do destino”, como algo que “estava escrito”, tem outro nome: covardia.       

Não devemos nos conformar, jamais, com erros e injustiças, mesmo os que estiverem estatuídos e fizerem parte dos usos e costumes do nosso povo e de nossas instituições. E estes, convenhamos, não faltam. Pelo contrário, existem em profusão. Claro que há várias formas civilizadas de mostrarmos nosso inconformismo, sem nos colocarmos à margem da sociedade por burlar alguma lei. Nem toda legislação existente é justa e boa (ousaria dizer que a maioria não é). Todavia, se nos recusarmos a nos submeter a ela, estaremos sujeitos às punições por ela previstas. Isto é um fato que devemos ter sempre em mente.

Leis são coisas necessárias para a ordem pública, sobretudo para evitar que o forte submeta e escravize o fraco, o que é, óbvio, gritante injustiça. Mas elas raramente são perfeitas. A perfeição é interdita a nós, humanos. Nossas falhas, contradições e interesses particulares, nem sempre bons para a coletividade, impedem que todos sejam satisfeitos e protegidos.  As leis são elaboradas por homens como nós. Ou seja, sujeitos a erros e contradições. E elas, não raro, consagram interesses que não são os da maioria. Devemos denunciar, sempre e incansavelmente, as que tiverem essa característica. Devemos apontar suas falhas e lutar por sua modificação ou revogação. Enquanto estiverem em vigência, porém, não podemos e nem devemos burlá-las. Isso não significa estar conformado com o erro. O conformismo, no caso, seria aceitá-las calado.

Orson Welles lembra que “os santos e os artistas não se evidenciam na história pelo seu conformismo e é um fato evidente, mas esquecido, de que não existe arte ou artista domado, dominado ou posto de quatro”. O inconformismo sadio e inteligente, portanto, é a melhor forma de contribuirmos construtivamente com a sociedade e com a civilização. A pobreza não é uma fatalidade, suposta determinação divina, para expiar culpas que de fato não tenhamos. As injustiças não devem, e não podem, passar incólumes, sem que as denunciemos e as combatamos, porquanto não são cometidas por “potestades”, mas por seres tão frágeis e perecíveis como nós.  As artes e, claro, a Literatura, são, e devem ser sempre, instrumentos de ação no combate a esses males.

Como escritor (posto que dos mais modestos e pequenos), não me conformarei, jamais, com o fato de dois terços da humanidade estarem submetidos à miséria, ou no seu limiar, para sustentar os caprichos e desperdícios do um terço privilegiado restante. No que essa parcela da população mundial é melhor do que nós? Em nada de essencial. Tem as mesmas necessidades que temos, idênticas fragilidades, mas, em decorrência de seculares (na verdade milenares) distorções, não precisam sequer trabalhar para se beneficiarem do fruto do trabalho de bilhões de pessoas. Por que? Porque as próprias leis, iníquas sem dúvida, os beneficiam.      

O filósofo e matemático grego Pitágoras de Samos ensinava a seus discípulos, pelos idos de 490 antes de Cristo, que “enquanto as leis forem necessárias, os homens não estarão capacitados para a liberdade”. Passados mais de três milênios, ainda persiste essa necessidade que é, até mesmo, muito maior, até pela quantidade imensa de pessoas no Planeta. Naquele tempo, qual era a população mundial? Poderia ser estimada em qualquer coisa como dez a quinze milhões, se tanto. Hoje, todavia, passa dos sete bilhões de indivíduos e aumenta não apenas a cada década, ano ou mesmo mês, mas a cada hora. E as leis são mais necessárias do que nunca nesse contexto. Mas uma legislação lógica, coerente e minimamente justa, que submeta a “todos” e não apenas os que não possam pagar bons advogados.

Não me conformo e jamais me conformarei com isso. Artistas e santos (caso ainda haja algum) também não se conformarão. Não serão “domados, dominados ou postos de quatro”, conforme Orson Welles acentuou. Por que? Porque nos ocupamos do mundo. Porque optamos por viver e não meramente “sobreviver”. Porque nos preocupamos não apenas com o presente, com esta geração, mas com a garantia de que haja algum futuro para nossa espécie, cada vez mais ameaçado sem que a imensa maioria sequer se dê conta.

O filósofo e alquimista chinês Lao-Tsé, que viveu entre os séculos XIV e IV antes de Cristo, (ninguém sabe determinar, sequer com razoável aproximação, em que época foi), escreveu: “Os que aceitam o mundo, não se ocupam dele. Os que se ocupam do mundo, não o aceitam, tal como ele é”. Os artistas e os santos não o aceitam. Eu não aceito. E você, meu paciente leitor, aceita? Está conformado com o que aí está ou faz alguma coisa, qualquer coisa, para mudar para melhor esta dramática realidade de hoje?

Boa leitura.

O Editor.


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O amestrado Geraldo Vandré

* Por Urariano Mota

O leitor Xico Júnior, na coluna passada, pediu um texto sobre Geraldo Vandré. Procurarei atendê-lo agora. Lembro que ao ver a entrevista de Vandré na Globo News, passei dias ruminando. Vinha uma canção íntima, que na década de 70 era senha:

“Eu vou levando a minha vida enfim
Cantando e canto sim
E não cantava se não fosse assim
Levando pra quem me ouvir
Certezas e esperanças pra trocar
Por dores e tristezas que bem sei
Um dia ainda vão findar...
Deixa que a tua certeza se faça do povo a canção
Pra que teu povo cantando teu canto ele não seja em vão”

Que revolução queríamos naqueles anos, quando ouvíamos a canção de Vandré? Que peitos puros guardávamos ainda não provados pela luta? Agora, aparecia na entrevista: um velho de boné, com a insígnia da FAB, cabisbaixo, com o pensamento cheio de interrupções. O diabo era que nesse pensamento falho, ainda assim, sobrevivia uma certa lógica, como naquele louco Hamlet. Havia uma certa memória, montada, como em toda memória,mas, no caso de Vandré, com os cortes cirúrgicos que expurgavam a violência do regime militar.

E houve então a primeira ressalva, ao entrevistador. Ocorre com Geneton Moraes Neto (junto com Vandré na foto) o que é comum em 99% dos repórteres na imprensa do Brasil: eles não entendem nada vezes nada da ditadura. Não é que alguns, pela idade, não tenham passado por aqueles malditos tempos de Médici (por coincidência, o período da volta de Vandré ao Brasil). Alguns viveram, mas a sua experiência é exterior aos perseguidos. Devo dizer, eles não comeram e beberam com e daqueles jovens entusiastas que viviam no limite, clandestinos, entre ruas escuras, promessas de barbárie e bares infectos. Daí que os jornalistas cometam os maiores erros. Eles não têm o conhecimento sofrido da dinâmica.

Pela pesquisa, pelo aprendizado humilde, atento e curioso, poderiam driblar essa impossibilidade da experiência vivida. Mas não, na entrevista parecia que Vandré era autor de duas músicas, Disparada e Caminhando. Pela insistência do repórter nessas canções, parecia. No entanto, há um momento na entrevista em que Vandré refuga, como um cavalo refuga, a seu caráter de compositor engajado. Se o entrevistador houvesse ido além das duas canções, poderia ter lembrado uma canção do senhor de boné, direta como um soco:

“O terreiro lá de casa
Não se varre com vassoura,
Varre com ponta de sabre
E bala de metralhadora....”.

Mas isso ficou oculto das pessoas que viram o compositor pela primeira vez. É possível que houvesse uma pauta prévia, aquela que todo repórter hoje no Brasil tem antes da realidade. A saber, no caso do velhinho: na pauta, havia que mostrar Vandré como um sobrevivente da velha esquerda, recuperado com vivas aos militares. A pauta do escândalo. Nesse particular sentido, a entrevista foi um sucesso. Na verdade, ela nem precisava da presença física de Vandré, bastavam-lhe os elementos essenciais da caricatura: um velho, um boné e a logomarca da Força Aérea Brasileira. O que deveria ser uma revelação do que o regime de 64 fez com um compositor de gênio, transformou-se em uma exibição de paradoxos e ruínas.

Na verdade, Vandré já oferecera antes à imprensa as linhas mestras da sua derrocada. Antes até da sua canção de homenagem à FAB. No coletivo virtual “Os amigos de 68”, uma militante médica, a quem não pedi autorização para divulgar o nome, informou:

“...Foi em torno de 74, quando eu fazia residência no Pinel. Conheci Vandré quando ele foi internado na emergência psiquiátrica da Clínica de Botafogo. Motivo alegado: Vandré estaria ‘armado com uma faca’ e ameaçava matar a sua irmã. Só o vi dias mais tarde, quando tocava violão para os internos no pátio da Clínica. Aparentava ‘tranquilidade’, mas sua fisionomia era de dor. Ele era ouvido com atenção e certa admiração. Sabiam que se tratava de um compositor famoso. Não consigo me lembrar o que tocava. Fiquei muito emocionada e chocada com tudo aquilo. Era o resultado das muitas torturas que ele sofrera na repressão dos anos 60/70...”

Hemingway em “O Velho e o Mar” dizia que é possível destruir-se um homem, mas nunca derrotá-lo. Na entrevista, o que se viu foi um homem ainda em estado de terror, em plena democracia. Nela, Vandré nos lembra os elefantes amestrados, torturados, que levantam a pata para o público no circo. Por isso não sabemos ao fim se o gênio de Vandré foi destruído. Peguemos então um caminho de esperança: Vandré continua nas suas canções, ele não foi derrotado.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.


Solicitação de amizade...

* Por Eduardo Oliveira Freire

"Seu eu do passado quer ser seu amigo"

Desculpa, mas não quero contato contigo. Você ao saber do seu futuro, que sou eu, fará mudanças no passado e, aí, não serei mais como sou e sim outro que você quer ser.

Meu instinto de sobrevivência está em alerta. O que está feito, tá feito. Tanto minhas alegrias quanto as cicatrizes causadas por meus erros ou desventuras fazem parte de mim.

Enfim, não quero desaparecer, transformando-me em algo parecido ao ideal que você (eu antigamente) tanto almejava na época.

* Formado em Ciências Sociais, especialização em Jornalismo cultural e aspirante a escritor - http://cronicas-ideias.blogspot.com.br/