domingo, 27 de abril de 2014

Uma mulher incógnita

* Por Cecília França


Ela acreditava que todos teríamos um momento epifânico no fim da vida, quando descobriríamos que muitas coisas foram em vão e que apenas as executadas por amor realmente interessaram. Era estranha. Não parava de mexer a boca em um tique que contribuía para enfeiurar suas feições. Carregava consigo bloco de notas e caneta em qualquer que fosse a situação e, não raro, era possível vê-la redigindo apressadamente algo que jamais saberíamos o que é.

Incógnita e amiga de todos – se é que existe tal paradoxo. Sabia ser amigável sem abrir-se com os demais. Envergonhava-se de suas glórias e espalhava seus raros vexames. Dos elogios que recebia, por exemplo, poucos ficavam sabendo; já das vezes em que excedia na bebida, era senso comum.

Sabia que era diferente – e seus amigos também – só era difícil precisar qual ponto lhe conferia tal individualidade. Não se rendia a modismos. Mantinha os cabelos cacheados a despeito do sucesso das chapinhas. Recusava-se a usar botas de cano longo apenas porque estavam na moda – usava-as apenas porque eram confortáveis.

Como repórter, era considerada a mais "macha" dentre as mulheres da redação: aquela que não se esquivava frente a uma ida ao presídio ou ao lixão da cidade. Era complacente, não por opção, mas por natureza.

Intrigava o mais atento de seus colegas de trabalho, que não negava a atração que sentia por aquela mulher, ora feia, ora bonita. Às vezes bem-humorada, outras ranzinza. Mas, em suma, diferente.

Parecia uma fortaleza que derretia a cada declaração de ingenuidade que proferia com olhar penetrante de anjo. Para ela, o amor era tudo. E quem não concordasse com isso agora o faria em determinado momento da vida. Ao mesmo tempo em que exalava doçura, era intransigente. Enfim, uma incógnita para nós, tolos.

* Jornalista


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