quarta-feira, 23 de abril de 2014

Palavras dentro de palavras

* Por Cecília Prada

TALVEZ – ela se disse, de repente maravilhada com sua descoberta. A única palavra possível e necessária: TALVEZ. Possível até mesmo antes do café da manhã. Palavra-tudo: armário, cabide, travessão e travessia. Palavra guarda-chuva. Palavra evocativa, mediúnica, trazendo todas as possibilidades, se balançando pra lá e pra cá, bonachona, permissiva - uma palavra que ia buscar os fios perdidos de suas histórias. Minha avó que se balançava na mangueira quando lhe gritaram: “Nhãna, desce já daí que tá na hora do casamento!”

TALVEZ- seus grandes braços. Também palavra-árvore, gênese, cheia de portas e janelas e sinos bimbalhando.

A única palavra necessária e possível, por onde, talvez, poderia repescar seus medos e hesitações e ir buscar tudo, sua infância, sua vida, sua galeria pessoal, aventuras, trambolhões, encontros, desencontros – enfim. Trazer seus cacarecos todos - pedindo desculpas por estar tudo em cacos, seus “fragmentos”, suas “descontinuidades”, diria, se seu nome fosse Walter Benjamin.

***

TALVEZ—colocando-a, bússola, na direção do possível. Sem a preocupação de achar o norte, bússola doida, descumpridora de funções, sem ter de achar isso, o rumo, a palavra certa-certinha, o ponto de vista—essa coisa sisuda, exigente e de óculos.

(Palavra que se acompanha de um ponto de interrogação, intrínseco. E seco. Mesmo que ele não esteja ali, palpável, retorcido como pescoço de frango depenado.)

Talvez – contar um episódio da infância? Qual?

Ou histórias prometidas, encantadas ou não tanto, amores? alguns pelos anos perdidos, preservados. Outros, tentativas e esboços, entre palavras perdidas. Ou nunca ditas – as essenciais.

***

Parou de escrever, levantou a caneta no ar como se a retirasse de um caldeirão e a sacudisse, tão molhada de emoção/espanto estava. Deixá-la à espera de fisgar o ar, palavras no ar, no corredor do Tempo, enquanto os dedos ficavam difíceis, amortecidos, e o braço estalava nas juntas.

E se não pudesse mais escrever? Esse, era o terror. Talvez....Talvez se...Talvez então devesse...
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(E foi juntando cada vez mais palavras, palavras, palavras, foi produzindo ininterruptos bilhetes,cartas, e-mails, relatórios, contos, poesia, romances, e uma grande confusão – uma obra, enfim. Assim são os escritores. Seres que – talvez- tenham feito das palavras todas do mundo apenas envoltórios toscos, se não rebuscados até, onde procuram esconder sua devorante inexprimível irremediável solidão).

* Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem cinco livros de contos publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP), onde termina um romance autobiográfico.


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