quarta-feira, 30 de abril de 2014

“Caminhando contra o vento, sem lenço sem documento” (Caetano Veloso)

* Por Mara Narciso

Seu amor e uma cabana” seriam suficientes para ser feliz. Aqueles que se aposentam falam na volta às origens, em comprar uma terrinha e ir morar no campo. Os poetas não param de cantar a vida simples como no roque rural Zé Rodrix e Tavito imortalizado por Elis Regina que diz: “Eu quero uma casa no campo/ Do tamanho ideal/ pau-a-pique e sapé/ Onde eu possa plantar meus amigos/ Meus discos e livros/ E nada mais”. Os citadinos sentem inveja dos “carneiros e cabras pastando solenes no meu jardim” e de como ter uma vida simples parece bom, fazendo contraponto ao verbo mais empregado na cidade: correr. Mas não o correr para se exercitar, mas o exercer a pressa sem sentido, sem rumo, em busca do vazio existencial.

Na década de 1960/70 o mundo assistia ao modo de vida hippie, no qual a pessoa se desligava dos valores consumistas. Andavam em grupos, não cortavam o cabelo e a barba, não cultivavam hábitos de higiene, usavam roupas velhas e rasgadas e tinham poucos pertences, levando tudo numa mochila. Era o tempo da vida nas comunidades em que tudo era de todos. A paz e o amor eram a bandeira, além de desbancar os valores paternos. Cultuavam a liberdade no pensamento e no sexo, além da fome de cultura, com influência oriental. O movimento deixou sementes, ficando a ilusão de que é possível ter uma vida desprendida.

Vemos-nos agarrados a centenas de compromissos, amarrados pelo pescoço a obrigações imaginárias contra as quais não brigamos. Quem não está com os olhos arregalados, coração acelerado, numa permanente pressa, é de algum outro mundo, não desse. São montes de cartões e senhas. Conexão 24 horas e urgência em fazer coisas inúteis. Contraditoriamente, permanece o discurso de uma vida descomplicada.

Ambiguidade assolada pela mentira. Que descomplicar que nada! Queremos sim a escravidão funesta, que nos tira a saúde mental. Relaxar, meditar, música, conversar, quem tem tempo para isso? Com tantas mensagens para responder, atualizações para checar, downloads para fazer. Somos seres urbanos cheios de necessidades que não existiam até anteontem.

Isso me assustou há dois dias. Para ficar fora de casa por 27 horas, precisei de mais de uma hora para arrumar uma valise de viagem com um pijama e duas mudas de roupa (possibilidade de mudança no tempo climático) e os apetrechos que nos impomos carregar. Por ser uma pessoa de hábitos simples e vestimenta no estilo jeans e camiseta, assustou-me o longo detalhamento da minha bagagem. E até gerou certa polêmica na partida, quando no carro, toquei no assunto.

Fomos prestigiar o lançamento do livro “Raymundo Colares e o fogo alterante da criação”, de Felicidade Patrocínio, em Grão Mogol, que dista 150 km de Montes Claros. No carro, junto com a autora do livro, mais duas amigas, Adelaide Godinho e Geralda Magela Sena, além do motorista Elias, falei da minha surpresa ao constatar como acabamos por nos tornar servos de nós mesmos e de rotinas massacrantes que nos impomos. Mencionei os remédios de uso contínuo (colesterol e angina do peito), e também da possibilidade de passar mal e precisar de outros medicamentos, então os carregava comigo. Embora criticada, como se quisesse adoecer, não acho sensato deixar os remédios em casa, sabendo que já estive em situação de precisar usá-los.

As questões de higiene passam longe da sensatez. Como seres urbanos ao extremo, não basta um pijama, uma escova de dentes e uma roupa íntima. Os anexos são múltiplos potes, bisnagas, vidrinhos, caixinhas, embalagens de muitos formatos, bolsinhas, apetrechos incontáveis, de todas as consistências, que vão enchendo as repartições por todos os lados. Levei apenas um chinelo, e o sapato que usaria na solenidade foi nos pés. Não uso perfume e nem pente, e ainda assim devo ter carregado comigo mais de dez quilos de coisas.  Lá é serra e esfria à noite. Levei apenas um casaquinho leve e cheguei a sentir frio. O pijama foi curto, para ocupar menos espaço, e o fato de que levei o mínimo mesmo, é que só não usei o short e a camiseta.

Assustou-me o agarramento que temos com hábitos e objetos. Não sabemos mais viver sem fita dental, cremes, protetores, maquiagem, desodorante e outras traquitanas. A viagem e o lançamento foram excelentes e ainda tive a oportunidade de filosofar questionando esses nossos valores de prisioneiros da civilização. Afinal, quem vive sem os confortos da vida moderna, tais como ar-condicionado, celular e internet?

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


2 comentários:

  1. Realmente, Mara, é espantosa a quantidade dessas "extensões da gente". Que atire a primeira pedra o franciscano capaz de despir-se delas... Abraços.

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  2. Um banho e um lavar de cabelos passam léguas do água e sabão. Imagine numa roça chupar você uma manga e não ter fio dental e demais tralhas? Incômodo na certa. Ser urbano demais estraga os passeios rurais. É preciso nos definirmos como frescos, e começarmos a abrir mão de alguns itens. Agradecida pelo retorno, Marcelo.

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