sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

12 anos de escravidão e o Brasil

* Por Urariano Mota

 Mais de um crítico já observou que o filme “12 Anos de Escravidão”,  para historiadores norte-americanos, delimita um marco no conhecimento da escravidão. Falemos agora do que esse filme representa para os brasileiros. 

Na última sexta-feira, na fila do cinema aonde fui, não havia um só negro. Minto: havia só este mulato que agora escreve. Ao procurar outro na fila, recebi dos cidadãos de pele mais clara uns olhos envergonhados, que se baixavam até o chão. Tão Brasil. Tão brasileiro é o pudor educado para o que não se enfrenta. Mas o filme na tela nos pagaria. Lá, podemos ver o retrato da casa-grande: a indiferença de todos ante a tortura. Linda, a sinhá olha da varanda o negro ser torturado e nada vê, melhor, assiste ao espetáculo obsceno como uma liberalidade do senhor, o seu marido. Que aula. É um filme quase didático da infâmia, do que no Brasil está encoberto até hoje.

Para a nossa própria história, a do Nordeste do açúcar em especial, para o que não se destaca em Gilberto Freyre, para o que em Gilberto é prosa encantatória, a realidade no filme mostra um escravo na forca, pendurado por horas em uma árvore, enquanto a rotina da fazenda segue sem distúrbio, sem assaltos de horror ou de repulsa. Mas isso é tão Brasil, amigos. Hoje mesmo, aqui na minha cidade, na sua,  jovens são amarrados em postes, os velhos pelourinhos. Os novos escravos são espancados, enquanto comunicadores na televisão aprovam e ganham dinheiro e fama por açular a massa para o linchamento.  

Se houvesse uma só imagem a destacar, eu destacaria a tortura de uma escrava sob o chicote. Por um lado, lembrei o comportamento da sobrevivência sob os torturadores na ditadura brasileira.  Por outro, se fosse desenvolvida ao nível do real, do histórico, a cena daria vômitos pela agonia da dor, apesar de apenas representada. Porque a realidade é ainda mais cruel que o mostrado na tela. E os corações mais delicados, e hipócritas por extensão, se recusam a ver que os negros escravos no Brasil eram passados em moendas de cana, que expulsavam suas vísceras como bagaço. Outros, após o chicote, condenados à morte tinham as feridas abertas lambidos por bois. E aqui não preciso falar o quanto é áspera, cruel e ferina a língua de um boi. Poupemos o domingo. Mas de passagem menciono que  negros eram ferrados no corpo como os quadrúpedes da fazenda. Eles não tinham a marca do dono por uma medalhinha, como aparece no escravo Salomon no filme.

É estranho, é sintomático da crueldade brasileira, que os melhores relatos sobre a nossa escravidão (nossa aí em mais de um sentido, de falta de espírito liberto e de herança cultural) venham de estrangeiros, como os descritos em Charles Darwin e Vauthier, o engenheiro francês que viveu no Recife.

De Vauthier cito: “Madame Sarmento nos contou que como sua negrinha lhe tinha roubado seis vinténs, ela amarrou-lhe as mãos e deu-lhe umas boas chicotadas!!! Levantando- lhe a roupa!!! Sem nenhum constrangimento!!! Diante dos filhos!!! O mais velho deles observou que o posterior da negrinha não era mais bonito do que o de um cavalo, quando levanta a cauda. Qualquer pessoa poderia chegar a praticar coisas semelhantes num momento de excitação e envergonhar-se delas depois, mas contá-las... Que mulher! Que alma!... Hoje o cadáver de um negro ficou boiando na praia, debaixo das nossas janelas, levado e trazido pelas oscilações das marés. Mil pessoas passaram, viam-no, pararam um instante antes de seguirem caminho muito filosoficamente. Aprecio pouco as ideias geralmente admitidas sobre cadáveres que tendem em alguns casos a conceder mais cuidados aos despojos sem alma do que ao ser quando está vivo – mas este descaso, essa indiferença geral perante a morte – é verdade que era um negro! Um negro vivo já é pouca coisa: o que será então um negro morto? Essa incúria generalizada com as exalações que emanam de um cadáver, tudo isso caracteriza de modo bem saliente esta barbárie, engastada na selvageria e mal maquilada em civilização”. 

Saímos do cinema com uma frase do personagem na memória:  “Eu sou a prova de que não existe justiça na terra”. Brancos, negros e mestiços de todas as cores bem compreendemos. Enquanto os miseráveis continuarem a ser presuntos, presidiários, enquanto não for vista a pele mais negra no topo da sociedade, em um papel que não seja o de capitão-do-mato, como Joaquim Barbosa, não existe justiça no Brasil. Mas podíamos começar pela conhecimento real da nossa história.

É necessário que esse filme se prolongue em artigos e discussões entre os brasileiros. Ele é o vislumbre do que temos sepultado. Vejam o filme e releiam a história escura, oculta da escravidão. O filme é melhor do que os livros de sociologia escritos no Brasil até hoje.    

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

Um comentário:

  1. Estranhamente notam-se que quando alguém refere-se a um negro como negro, ao mulato como mulato e ao branco como branco é chamado de racista. Entendo que racista é quem sente, ainda que não fale, que uma raça é superior a outra. Sou parda e todas as vezes que refiro a mim citando esta cor, dizem que eu sou branca e muito racista. Eu não entendo muito bem, embora sinta na pele, esse racismo "cordial" que nos envolve.

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