domingo, 26 de janeiro de 2014

Quando se duvida do homem
  
A figura hedionda do torturador – de triste lembrança no Brasil até tempos relativamente recentes – que se julgava em vias de extinção com os progressos verificados no campo do Direito e, principalmente,  com o avanço dos meios de comunicação, denunciando as arbitrariedades cometidas, continua sendo sinistra realidade. Não ostensivamente, já que a legislação se propõe a punir quem aja dessa maneira, pelo menos entre nós. Talvez não haja mais torturadores no Brasil, embora eu não ponha minha mão no fogo. Mas essa figura sinistra, hedionda e cruel ainda é onipresente em muitas partes do mundo.

Nunca, em tempo algum, se falou tanto sobre direitos humanos. Contudo, em raros períodos da história dos povos eles foram tão desrespeitados, como têm sido agora. Esse conceito, aliás, é propositalmente deturpado por alguns, para justificar seu desrespeito a pretexto de ser “necessário para a proteção das pessoas de bem”. Inocentes úteis, pessoas broncas incapazes de raciocinar por si próprias, volta e meia dão entrevistas em que expressam a opinião de que “direitos humanos se destinam a proteger bandidos para que não sejam devidamente punidos pelas atrocidades que cometem”. Óbvio que não se trata disso. Não têm nada a ver com marginais e com marginalidade Contudo, muito desavisado por aí firma convicção que seja essa a finalidade dos direitos humanos.

É justificável e compreensível a ira, que ainda hoje desperta, a lembrança das atrocidades cometidas pelos nazistas, nos campos de concentração, durante os anos da Segunda Guerra Mundial. Poucas vezes se falou tanto de Auschwitz, Birkennau, Bergen-Belsen e Treblinka, entre outros lugares sinistros e aterradores em que a vida não tinha o menor valor. Mas poucos, pouquíssimos denunciam, por exemplo, o que ocorre hoje, talvez neste exato instante, nos subterrâneos de inúmeros presídios, mundo afora, como se ninguém mais fosse torturado por causa de suas idéias e convicções. Citam-se, com razão, os temíveis “Tonton Macoutes” do Haiti como cruéis torturadores. Omitem-se, todavia, tantos outros, ao redor do mundo, que espancam, humilham e não raro matam a pancadas suas indefesas vítimas. Não é apenas lamentável (e criminoso) que prisioneiros políticos ainda sejam torturados. É inconcebível que eles ainda existam, e em países que querem posar de “democráticos”!

Não se admite que um homem seja preso apenas porque comete o “crime” de pensar! Porque é através da razão – que, aliás, é o que o diferencia dos irracionais (e, portanto, é seu distintivo) – que ele pode discordar de atitudes atrabiliárias dos poderosos. Ou se rebelar contra leis iníquas, elaboradas em seu nome, mas que são ditadas ao talante de ditadores insensíveis ou de políticos espertalhões. Admitindo-se, porém, apenas por hipótese, que a prisão política seja necessária, como forma de autodefesa do Estado contra os que atentem contra sua existência (o que é inadmissível), não se concebe que a um homem, privado do bem mais precioso de todo o ser vivente, sua liberdade, seja, ainda, acrescentada a punição da sua degradação. Que a sua pessoa seja desrespeitada, achincalhada, conspurcada por alguém que, este sim, mereceria, pela sua índole violenta, ser segregado do convívio social: o torturador.

Em pelo menos um terço dos países da comunidade internacional ainda se pratica a tortura regular contra prisioneiros políticos. Os norte-americanos, por exemplo, torturaram, comprovadamente, prisioneiros no Iraque, no Afeganistão e em Guantanamo, enclave dos EUA no território de Cuba e não importa a qual pretexto. Ademais, basta ler os relatórios mensais emitidos pela Anistia Internacional para se ter um panorama do desrespeito aos direitos humanos e da prática de tortura, através do mundo. Deduz-se que em cerca de 50 países (e o número, provavelmente, é muito maior) o direito de pensar não existe. Seus infelizes habitantes têm necessidade, até como forma de autopreservação, de se manterem alienados, perpetuando o predomínio dos tiranos e dos canalhas.

A ninguém assiste o direito de oprimir, de humilhar, de enxovalhar pessoas dignas. E, pior ainda, é inadmissível que esses homens sofram torturas de qualquer espécie por causa das convicções que têm. Nenhum ser humano pode ser privado de sua liberdade por aquilo que pensa, enquanto, pelo menos, seu pensamento não for traduzido em alguma ação delituosa que atente contra as leis e principalmente contra os direitos dos semelhantes. Como bem esclarece o mestre Miguel Reale, no seu livro “Horizontes do Direito e da História”, com a propriedade dos sábios: “Para o homem moderno, a liberdade é um valor que necessariamente se inclui no ‘dever ser’ da personalidade. A concepção universal de liberdade é uma expressão do conceito universal de pessoa, pela consciência de que cada ser humano é precioso em si mesmo”.

A “Declaração Universal dos Direitos Humanos” foi firmada, solenemente, em 10 de dezembro de 1948, por todos os membros das Nações Unidas. Não pode e não deve, pois, ser tratada como “peça literária” de ficção, como letra morta, como mera manifestação  de intenções sem nenhum efeito prático, como simples arremedo de civilidade por parte dos países signatários. Se não há respeito nas sociedades nacionais para com seus próprios integrantes, se os indivíduos que se auto-atribuem poderes até divinos, humilham, massacram, matam, furtam e privam a liberdade de seus semelhantes, o que esperar de um relacionamento internacional?

Como acreditar que um sujeito que aterroriza, digamos, a própria mulher e filhos em seu lar, possa ser gentil, piedoso e íntegro no relacionamento com estranhos? É muito difícil, senão impossível, que isso ocorra, não é mesmo? “O lobo perde o pêlo, mas não perde o vício”. O poderoso que é violento em relação a seus irmãos de nacionalidade, será tarado homicida quando tratar com alguém de outra comunidade, que não a sua. Com isso, os mesmos erros que conduziram civilizações inteiras à extinção se repetem, agora em maiores proporções, por afetarem muito mais pessoas. Os mesmos déspotas tirânicos, ávidos por sangue e sofrimento, que do alto do seu sadismo ditavam normas de vida ou morte às multidões, sobrevivem hoje, travestidos de líderes políticos, de salvadores da pátria, de tutores nacionais.

O homem, em dez mil anos de civilização, conheceu avanços notáveis no campo das Ciências Exatas, da Física, da Química, da Biologia e de outras disciplinas, que tornaram mais fácil e confortável a vida. Entretanto, no tocante à convivência com os semelhantes, ainda está a mil anos-luz de atraso em relação aos tempos que vivemos. O ser humano, em geral, ainda tem dificuldades para entender que é efêmero e transitório e que deste mundo nada leva ao morrer, mas apenas deixa: atos, obras, pensamentos, realizações e permanentes ideais, que sobrevivem à própria efemeridade do homem.

Alguns legam à posteridade tantas e tão preciosas contribuições, que findam por se tornar alvos de permanente respeito e reverência. Outros, entretanto, quando baixam à tumba, terminam por receber um sinal da cruz apressado e supersticioso à simples menção de seus nomes, exorcizados “ad perpetuum” por tudo o quanto de mal representaram como paradigmas do lado ruim existente no animal “homo sapiens”.

Boa leitura.

O Editor.

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