segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

No escurinho do cinema


Por Daniel Santos


Durante toda a manhã, a mulher distribuiu cópias do currículo pelas empresas do centro da cidade, sob um sol que lhe aferroava nuca e têmporas, enquanto o sapato mordia no calcanhar como cão raivoso.

Realidade demais para quem precisava sonhar; com a conquista de um emprego, por exemplo. Por isso, nada comeu à hora do almoço, mas enfiou-se no cinema com uma lata de refrigerante para amenizar o calor.

Já descalça, olhos fixos na tela, recostou-se gostosamente e bebia a pequenos goles para fazer render o bom. Tamanho o prazer que quase pegou no sono, mas houve um sobressalto: algo pulara em seu colo!

Um gato, um amoroso filhote de gato! A mulher acomodou-o no assento ao lado e adormeceu acariciando-lhe o pêlo. Sem consciência do quanto dormira, despertou, mais tarde, com uma forte patada na mão.

Assustada, aprumou-se e viu que o companheiro se evadira para a última fileira de poltronas, onde nem o reflexo da tela alcançava. Seguiu-o e, de fato, apesar do escuro, viu que um olhar flamejante a chamava.

Olhos grandes demais para um filhote, mas ... Ao estender a mão para acarinhá-lo, duas patas poderosas agarraram-na, as unhas quase sangrando-lhe as costas e uma língua áspera penetrando seus lábios!
 
Quis gritar, mas não resistiu à imantação daquele corpo elástico nem à eletricidade dos bigodes. E, aí, perdeu os sentidos. Nunca chegou a sentir quantos dentes o apetite (o mais avaro) investe na saciedade.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.



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