sábado, 21 de dezembro de 2013

Galeria Metrópole

* Por Laís de Castro

Não vou revelar detalhes da nossa noite de núpcias, primeiro porque ninguém tem nada com isso, e depois, porque eu tenho vergonha mesmo, mas posso afirmar que quando ela me abraçou e me beijou naquela cama macia, eu me senti como se comesse uma travessa monumental de corações de alcachofra na manteiga e coração de alcachofra é a coisa que mais gosto no mundo, depois vem marshmallow, e depois água com gás. Aquilo, que começou no subsolo dois de uma galeria nojenta do centro da cidade, depois de dois meses, estava complicando a minha vida.

A cerveja trincava de gelada e nós sentadas naquele bar da Galeria Metrópole, embaixo, como se o prédio todo em cima pudesse esconder as idéias contra a ditadura militar ou, no mínimo, proteger nossas cabeças contra as balas perdidas do regime naquele ano sem graça de 1967. Nem vale a pena desfiar os crimes cometidos por aquele desgoverno como um rosário doloroso, mas é preciso que todos saibam que éramos uma geração cabisbaixa e enxertada de medos.

Nessa noite, porém, tinha apenas acabado mais uma gravação do programa O Fino da Bossa e vínhamos de aplaudir a magnitude de Elis Regina, a inspiração de Chico Buarque e o vigor da voz de Milton Nascimento e muita gente boa mais, que não quero ficar repetindo que eu não sou relógio de repetição. Por enquanto nos (des)contentávamos em aplaudi-los e chorar os amigos mortos. Conseguíamos separar as coisas e continuar desfrutando de alguma alegria, porque quando a gente é jovem a vida exorbita, o sangue se encaichoeira nas veias, somos imortais seres do amor o corpo e o coração abertos como as portas dos nossos olhos e ouvidos que tudo vêem, ouvem e saboreiam.

Com os cotovelos nas mesas de madeira que mal se via com a parca iluminação daquele subsolo escuro se amontoavam os amigos de palco e platéia, os cantores, tocadores e batedores de palmas, havia uma cumplicidade tácita, cada um no seu canto, a gente não ia pedir para tirar fotografia junto e nem atrapalhava a cerveja deles, eles não vinham pedir para sair na revista, quer dizer, eu era jornalista, portanto eles não atrapalhavam a nossa. Estivemos dezenas de vezes, a cerveja trincando de gelada, os famosos tentando apenas ser anônimos e tomar em paz seu álcool reconfortante de cada noite, os anônimos não tentando nada além do direito ao papo de botequim e à sua emoção. O Barbudinho era um bar onde todos eram iguais na paúra, na saudade e na ânsia de ser. Parecia haver ali uma placa: proibida a entrada da ambição, de alpinistas e de fotógrafos.

Pois ali mesmo, apesar de tudo, parecia que aquele gênio da música estava me olhando há horas, um jeito fixo, carinhoso, quase trêmulo. No começo nem pensei que fosse comigo, tenho essa mania besta até hoje, de achar que sou baixinha, feia e sem atração nenhuma, mas era comigo, alguém me proteja, socorro, aquela cara está me olhando. Meio sem jeito eu cruzava as pernas de um lado, elas ficavam mais à mostra por causa da saia curta (lembram da minissaia, vocês aí?), cruzava do outro, micava mais, acho que dava bandeira da minha falta de graça, ela quase sorria com o olhar que continuava parado em mim. Perguntei pro pessoal da mesa se aquilo estava acontecendo mesmo e eles disseram que sim. Tímida, tomei uns mil copos da cerveja trincando.

Para encurtar essa história maluca, depois de umas quatro horas foi que eu imaginei estar comendo aquela travessa de alcachofras de que falei lá em cima. No dia seguinte, ela se levantou, vou para o Rio de Janeiro, moro lá, mas na semana que vem tenho que fazer O Fino de novo (fazer era cantar lá e O Fino da Bossa, para os mais jovens, era o programa de MPB comandado por Elis Regina na TV Record de então, de saudosa memória) eu te vejo no Barbudinho e eu lá quieta, sentada na mesa, tomando o café mais preto do mundo, não precisa me dizer nada, pensava, eu sou jornalista e sei que você é casada e tem um filho pequeno, porra. Em casa, aquela noite não me saía da cabeça, nem do estômago que doeu o dia inteiro e nem dos pulmões, eu fumava tanto que tossi o dia todo. Sou burra, besta, porque fui fazer isto, uma alteração mental, um frenesi, imprudência, insensatez, sei lá o que mais, isso pode dar uma merda só, naquele tempo, todos hão de convir que não era como é hoje. Aconteceu de novo na semana seguinte e na outra e na outra. Meu coração estava encharcado daquela paixão e eu me entreguei mais cegamente do que morcego de dia, tinha a impressão de que aquela mulher tinha nascido para ser minha, todo mundo odiava a segunda-feira, eu esperava como uma criança espera o seio materno que vai lhe alimentar.

Com 20 anos eu precisava trabalhar, então fiz uma espécie de bolsa para guardar todo aquele amor, pendurei no peito e não dei nenhuma bandeira. Era tudo guardado a oitocentas chaves, sete seriam pouquíssimas naquele caso. Eu chorava, ria, viajava do extremo desespero à mais cruel euforia, que em cubículos de alucinação deste tipo pisam os apaixonados ou mães que perdem filhos e em camarotes de euforia se sentam os desesperançados. Bebia, ávida, toda a água do flagelo e da fortuna do amor num gole. Para saciar aquela sede nem mesmo toda a água do universo.

Na minha aparência, contudo, não deixei que a mutação sequer tangenciasse. Eu era a mesma. Se me arrancassem a pele, sim, surgiria uma ferida profunda, onde a tristeza e a felicidade se misturavam como café e leite.

Era exatamente uma xícara de café com leite que eu sorvia, com a paz possível, antes de sair para o trabalho, quando o telefone tocou eu te amo, eu te amo, eu te amo, falava devagar e pausadamente a voz que o país inteiro conhecia, como se quisesse que a mensagem fosse melhor entendida. Tola, perplexa e muda, do lado de , esqueci de perguntar como ela sabia meu telefone, que, vocês hão de lembrar, em 1967, celulares eram objetos de filme de ficção, os números de São Paulo tinham cinco algarismos e DDD, nem pensar. As ligações eram feitas por telefonistas que avisavam, solenes, demora de duas horas, chamarei depois.  A cabeça zumbindo, eu também te amo, eu também te amo, escandi cada sílaba e ela avisou vou fazer a bosta da Jovem Guarda domingo, por um lado odeio tudo isto, por outro venero porque me leva até você, espero e a gente foge daquele monte de chatos logo que eu acabar, que merda, ter que cantar , tudo culpa do festival

Depois daquele telefonema, quando pisei na redação perguntaram se eu tinha chorado, tinha, meu cachorro morreu, nunca tive um cachorro na vida, mentia para os amigos, para a família, andava na transversal, o que tinha, na verdade, era um medo desgraçado que me zumbia na cabeça como motor de carro velho, aos trancos e barrancos. Depois de três meses eram três vezes por semana, não sei como ela se virava, mas estava sempre ao meu lado, o telefone tocava toda hora, eu te amo, não me deixa, eu repetindo que também, que não deixava, travada total, entregue ao destino, tinha um colega de redação a quem eu contava tudoafinal, sucumbi, ninguém é de aço – ela era árabe, maktub, me dizia e me abraçava e conversava comigo quando eu descia os degraus da perdição até um buraco mais fundo do que aquele subsolo onde tudo começara.

Eu era a mais feliz de todas as mulheres que haviam pisado na face da terra. E a mais infeliz. Eufórica. Depressiva. Naquela redundante montanha russa mental, sorvia em goles a doce paixão ancestral e vomitava em amargas e caudalosas golfadas o pavor do fim vaticinado.

Reunião de pauta, o poderoso chefão despachando as duplas, você e o Ferreira vão ver porque O Fino da Bossa acabou, não vai mais pro ar. Vê se tira uma entrevista bomba... eu não ouvi nem mais uma palavra do que ele dizia e minha roupa ficou inteira molhada de um suor súbito, todo mundo querendo saber o que era aquela palidez total,  pressão alta, pressão baixa, água com açúcar, sal embaixo da língua, senta aqui, deita, vai pro ambulatório, não vou, já melhorei vambora Ferreira, toca pro trabalho. No carro, sentada atrás, ruminei meu susto com farinha, engoli seco meu pavor. Com o que pude reunir de coragem, fiz a reportagem, cumpri a tarefa, a cabeça viajando ao Rio e voltando, as lágrimas galopando no meu sonho, querendo inundar o mundo e presas à minha responsabilidade. Resiliente, diriam os físicos, resiliente.

Vesti luto íntimo e corroí meu cérebro de dor e desolação nos dois meses seguintes, como se baratas o roessem e também roessem minha travessa de alcachofras. Nunca mais pisei no Barbudinho.

Antes e além disso, na noite daquele dia fatídico, não atendi o telefone que tocou madrugada adentro, sem trégua.

* Jornalista, atuou no grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou, ainda,  8 anos na Editora Três (sob Luís Carta), 11 na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida Executiva e na Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros contos”, pela Editora Siciliano.


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