domingo, 17 de novembro de 2013

Tá, e daí?

* Por Raul Longo

O jogo de dominó seguia furibundo desde que entrei no boteco. Tanto que nem me atrevi a perguntar pela razão da tanta circunspecção, levando por conta da vontade de vitória das parceiradas: Mobília e Agito contra o Tá e o Daí.

Apenas intercalado pelo “plequet!” seco da jogada da peça num extremo da carreirinha preta de bolinhas brancas, o zumbir solitário de uma varejeira foi interrompido pelo vozeirão de contrito deboche do Mobília:
- Cês viro! Até o Genoíno, herói nacional da guerrilha contra a ditadura!

Outro “plequet” seguido de um olhar de desafio para o Agito. Desafio como num oferecimento:
- Tá!

Agito rodeou, rodeou, mas aceitou a oferta e soltou a pedra em meio ao desabafo:
- Deviam ter matado como comunista! Mas não faz mal... Não foi como terrorista, vai como petralha!

Ao invés de olhar pra carreirinha disposta ali na mesa, o jogador seguinte ficou encarando o adversário na espera da solução de outro, até perguntar:
- E daí?

De trás do balcão, Seu Manuel farfalhou virando a página do jornal:
- É uma besta! Não viram a foto da fachada da casa desse Jesuíno? Não entendo pra que serve ser presidente do partido da presidência e do maior esquema de corrupção da história do Brasilê, e viveire numa casa d’onde dentro não cabe nem o Mobília?

Mobília virou-se para olhar onde não caberia, mas não se comoveu nem disse nada. E o arremate do Seu Manuel ficou no ar:
- E ainda dizem que o burro sou eu...

Mobília olhou a ponta de cá da carreira, olhou a ponta de lá... Calculou e por fim decidiu, ainda que meio na dúvida, num “plequet!” meio xoxo. Jogou pedra e conversa fora:
- Gostei foi daquela muié: “Prova num tem, mas condeno assim mesmo”. Isso é que é sê macha!

Mal foi terminar de falar e, ligeiro, o “plequet” seguinte estalou:
- Tá!

Agito desconversou pra ganhar tempo no cálculo das pedras na mesa e as da mão:
- Pra que prova? Qué mais prova do que a corrupção do Waldomiro Diniz?

Dessa vez não deu pra ouvir o ruidinho no tampo da mesa, encoberto pelo sotaque do português:
- Ô pá! Aí está a prova de como é burro! Pra que raios foi se meter logo com o Carlinhos Cachoeira! Se não foi com o Cachoeira, foi com algum compadre do bicheiro. Com bicheiro não se pode mexer, pois que dá é nisso! O homem foi buscar a corrupção do Diniz lá no governo do Garotinho! Como diz o oitro: quem se mete com garotinho, amanhece...

Absorveu-se na leitura na página seguinte do jornal sem completar o dito do “oitro”, enquanto num gesto, passando a vez, o adversário perguntou mesmo sem descer pedra alguma:
- E daí?

Mobília mensurou a mão, a mesa. Fez que descia uma, segurou e deixou-se na prosa, disfarçando o vacilo:
- Dirceu e Genoíno podem até não ter culpa de coisa nenhuma, mas que o Delúbio entrou no Caixa 2, entrou! Esse meteu a mão no baleiro!

Por fim deitou a pedra que o da sequência demonstrou ser exatamente a que esperava num “plequet” que soou sonoro, espantando pra rua o zumbido da mosca sem que ninguém a notasse, atentos à exclamação do Seu Manuel pela foto do jornal:
- Aí Jesus! Olha que linda a casa do sítio do Roberto Jefferson! Este cá, sim, é que é um gajo experto. Eu também guardo aqui minha caixinha separada pra ajudar o genro na política. Se Deus quiseire, na próxima ele se elege e ainda vou a ter um sítio como esse. Vejam que brinco!
- Tá!

Surpreso, Mobília confessou-se sem jogo pra sua pedra única, passando a vez pro Daí que sorriu ao parceiro e depois pro Agito:
- E daí?

Agito desconfiou, mas não quis acreditar. Passou o mesmo olhar pro próximo, na esperança de que soltasse uma abertura pro parceiro bater daquela vez. Primeiro de um depois de outro, as respostas vieram em sequência como se das duas pontas na carreira de peças de dominó:
- Tá!
- E daí?...

Agito entendeu:
- Porra! Ocê fechou o jogo!

Irritado pelo final abrupto, começou a exigir:
- Isso é fugir da jogada. Tem de contar os pontos da mão... - mas já era tarde e se deu conta do ridículo. Tinham perdido a melhor de três e a “nêga”. Ali era só um tapetão arranjado pra cozinhar nova torcida que, em mim, se percebeu desinteressada.

Mesmo que tivessem menos pontos na mão - e por mais que blefasse sabia estarem carregados -, aquela rodada não queria dizer nada. O jeito foi ficar só na ameaça vazia:
- Vai ter volta!

O Tá e o Daí saíram deixando a conta do Seu Manuel pros perdedores que reclamaram:
- Pô Seu Manuel, o Senhor entregou o jogo!

Aproveitei pra pagar minha cachaça enquanto o dono do bar se defendia:
- Coisa alguma! Acham que sou burro! Tá escrito aqui, mas fiz como o Jornal Nacional, nem lembrei que o único que ainda não teve a prisão expedida pelo Joaquim Barbosa foi o Jefferson. Esse Joaquim, apesar de tiziu...

Enquanto o português tecia orgulho pátrio evocado pelo nome do Presidente do Supremo, fui ao banheiro fugindo de seus preconceitos racistas. Na volta, já de saída, ouvi-o considerar aos fregueses prediletos:
- Na próxima meu genro há de ganhar. A caixinha está gorda e é só esperar pelo partido ao qual o Barbosa se define. Torço para que substitua esse paneleiro do Aécio, assim o genrinho nem precisa sair do PSDB. Mas mesmo que o negão vá pro PSOL, meu cunhado que trabalha com filho do Barbosa lá na Globo já está a mexer os pauzinhos.

De saída, dei meu palpite:
- Ô seu Manuel!... Mas e o Mensalão Tucano, o do Eduardo Azeredo?
- Ah!... Mas esse já está a caducar, vai prescrever! O Barbosa é preto, mas não é burro! Nem eu que não sou Joaquim, mas sou Manuel!

Caí fora enquanto era tempo, mas ouvi o zumbido da mosca azul voltando pra dentro do boteco.

*Raul Longo é jornalista, escritor e poeta


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