segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Desacordo português

* Por Woden Madruga

João Pereira Coutinho é um jornalista e escritor português que escreve, semana sim semana não, na Folha de S. Paulo. Tem espaço reservado também no Correio da Manhã, de Lisboa, um dos mais importantes jornais de Portugal. Tenho-o entre os meus cronistas preferidos. Escreve sobre tudo. Ou quase. De Shakespeare a futebol passando por Woody Allen, Saramago, Nelson Rodrigues, Darcy Ribeiro, Elias Canetti, Mário de Andrade, Lula. Na pauta: literatura, cinema, política, gastronomia. As coisas que acontecem no mundo vistas pela sua ótica crítica, polêmica às vezes, e com pitadas de fina ironia. Aqui e acolá, sarcástico. Leitura agradável, do saber e do sabor de ser bom jornalista. Algumas de suas crônicas estão reunidas no livro Av. Paulista, publicado pela Editora Record, em 2009, ocupando um lugarzinho bem à vista na minha estante.

Esta semana, foi terça-feira, ele escreveu sobre o complicadíssimo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, invenção de acadêmicos que não pegou, tantas vezes adiada a sua aplicação. Era para entrar em vigor em todos os países de língua portuguesa em 2009. Não foi. Pegue adiamentos. Portugal não quer nem ouvir falar desse acordo. Basta ler os seus jornais ou os livros de seus escritores. Lá vale a ortografia antiga, como deveria valer aqui também. Por estes brasis já tem até dicionários com a nova ortografia. Mas a sua obrigatoriedade foi adiada mais uma vez. Tem um decreto assinado pela presidente Dilma, transferindo a coisa para 2016.

Bom, o assunto foi o tema da última coluna de João Pereira Coutinho, cujo título já diz tudo. Ou quase: O aborto ortográfico. Deveria ser lido por todos aqueles que gostam e são fiéis ao falar de nossa gente. Transcreverei algumas passagens do artigo, que começa assim:
- O acordo ortográfico é conhecido em Portugal como um aborto ortográfico. Difícil discordar dos meus compatriotas. Basta olhar em volta. Imprensa. Televisões. Documentos oficiais. Correspondência privada.
- Antes do acordo, havia um razoável consenso sobre a forma de escrever português. Depois do acordo, surgiram três escolas de pensamento. Existem aqueles que respeitam o novo acordo. Existem aqueles que não respeitam o novo acordo e permanecem fiéis à antiga ortografia.
- E depois existem aqueles que estão de acordo com o acordo e em desacordo com o acordo, escrevendo a mesma palavra de duas formas distintas, consoante o estado de espírito e às vezes na mesma página.
- Disse três escolas? Peço desculpas. Pensando melhor, existem quatro. Nos últimos tempos, tenho notado que também existem portugueses que escrevem de acordo com um acordo imaginário, que obviamente só existe na cabeça deles.

Adiante, João Pereira Coutinho ressalta:
- Felizmente, não estou sozinho nestas observações: Pedro Correia acaba de publicar em Portugal Vogais e Consoantes Politicamente Incorrectas do Acordo Ortográfico (Guerra & Paz, 159 págs). Atenção, editores brasileiros: o livro é imperdível.

E por aí vai o JPC. Seu artigo merece ser lido por inteiro. Precisa ser lido. É uma crítica perfeita a essa imposição e empostação acadêmica, empurrada pela goela abaixo dos patrícios brasileiros, portugueses, angolanos, cabo-verdenses, moçambicanos. Mais a gente de Timor-Leste, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, todos falando e escrevendo seu português com sotaques e cacoetes legítimos e deliciosos. Às vezes, engraçados.

Carlos Peixoto, diretor de redação de TN, acaba de chegar de uma viagem por Portugal, o que ele faz quase todos os anos. Gentilíssimo, me trouxe de Lisboa o último livro de Antonio Tabucchi (aliás, edição póstuma), escritor italiano que traduziu Fernando Pessoa, levando a sua poesia para a Itália. Título do livro Viagens e outras viagens, com o selo da Editora D.Quixote, tradução de Maria da Piedade Ferreira, a companheira do escritor.

Pois bem, já que estamos papeando sobre acordos, desacordos e abortos ortográficos, vale destacar aqui, a ressalva que a D. Quixote faz na ficha catalográfica do livro: Por vontade expressa dos herdeiros do autor, a tradução respeita a ortografia anterior ao actual acordo.

Aliás, nessas viagens de Antonio Tabucchi pelo mundo há uns desvios e paragens pelo Brasil. Como diria aquele meu amigo paraibano, de Cuité, pense num livro gostoso de ler, este do Tabucchi.

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NOTAS DO EDITOR:

Coloquei o mapa como provocação. Sou pelo acordo. Admiro e sou amigo de Woden Madruga, que considero o maior cronista do Brasil da atualidade. Outro grande jornalista que é contra: Moacir Japiassu, que escreveu os principais romances sobre as “revoluções” brasileiras no século passado: a de 30, Concerto para Paixão e Desatino; e a de 64, Quando Alegre Partiste.

Curiosamente, Woden, que tem mais de meio século de crônicas diárias, teima em não publicar nenhum livro.

* Jornalista e colunista do jornal Tribuna do Norte de Natal/RN


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