sábado, 21 de setembro de 2013

Os filhos de José das Dornas

* Por Júlio Dinis

José das Dornas era um lavrador abastado, sadio e de uma tão feliz disposição de gênio, que tudo levava a rir; mas desse rir natural, sincero e despreocupado, que lhe fazia bem, e não do rir dos Demócritos de todos os tempos - rir cético, forçado, desconsolador, que é mil vezes pior do que o chorar.

Em negócio de lavoura, dava, como se costuma dizer, sota e ás ao mais pintado. Até o Sr. Morais Soares teria que aprender com ele. Apesar dos seus sessenta anos, desafiava em robustez e atividade qualquer rapaz de vinte. Era-lhe familiar o canto matinal do galo, e o amanhecer já não tinha para ele segredos não revelados. O sol encontrava-o sempre de pé, e em pé o deixava ao esconder-se.

Estas qualidades, juntas a uma longa experiência adquirida à custa de muito sol e muita chuva em campo descoberto, faziam dele um lavrador consumado, o que, diga-se a verdade, era confessado por todos, sem esforço de malquerenças e murmurações.

Diz-se que quem mais faz menos merece e que mais vale quem Deus ajuda do que quem muito madruga, e não sei o que mais; será assim; mas desta vez parecia que se desmentira o ditado, ou pelo menos que o fato das madrugadas não excluíra o auxílio providencial, porque José das Dornas prosperava a olhos vistos. Ali por fins de agosto era um tal de entrar de carros de milho pelas portas do quinteiro dentro! S. Miguel mais farto poucos se gabavam de ter. Que abundância por aquela casa! Ninguém era pobre com ele; louvado Deus!

Como homem de família, não havia também que pôr a boca em José das Dornas. Em perfeita e exemplar harmonia vivera vinte anos com sua mulher, e então, como depois que viuvara, manifestou sempre pelos filhos uma solicitude, não revelada por meiguices - que lhe não estavam no gênio - mas que, nas ocasiões, se denunciava por sacrifícios de fazerem hesitar os mais extremosos.

Eram dois estes filhos - Pedro e Daniel. Pedro, que era o mais velho, não podia negar a paternidade. Ver o pai era vê-lo a ele; a mesma expressão de franqueza no rosto, a mesma robustez de compleição, a mesma excelência de musculatura, o mesmo tipo, apenas um pouco mais elegante, porque a idade não viera ainda curvatura de certos contornos e ampliar-lhe as dimensões transversais, como já no pai acontecia. Conservava-se ainda correto aquele vivo exemplar do Hércules escultural.

Pedro era, de fato, o tipo de beleza masculina, como a compreendiam os antigos. O gosto moderno tem-se modificado, ao que parece, exigindo nos seus tipos de adoção o que quer que seja de franzino e delicado, que não foi por certo o característico dos mais perfeitos homens de outras eras.

A organização talhara Pedro para a vida de lavrador, e parecia apontá-lo para suceder ao pai no amanho das terras e na direção dos trabalhos agrícolas.

Assim o entendera José das Dornas, que foi amestrando o seu primogênito e preparando-o para um dia abdicar nele a enxada, a foice, a vara, a rabiça, e confiar-lhe a chave do cabanal, tão repleto em ocasiões de colheita.

Daniel já tinha condições físicas e morais muito diferentes. Era o avesso do irmão e por isso incapaz de tomar o mesmo rumo de vida.

Possuía uma constituição quase de mulher. Era alvo e louro, de voz efeminada, mãos estreitas e saúde vacilante.

O sangue materno girava-lhe mais abundante nas veias, do que o sangue cheio de força e vida, ao qual José das Dornas e Pedro deviam aquela invejável construção.

Votar Daniel à vida dos campos seria sacrificá-lo. Apertava-se o coração do pobre pai, ao lembrar-se que os sóis ardentes de julho ou os tufões regelados de dezembro haviam de encontrar sem abrigo aquela débil criança, que mais se dissera nascida e criada em berços almofadados e sob cortinados de cambraia, do que no leito de pinho e na grosseira enxerga aldeã.

E desde então, desde que pensou nisto, um idéia fixa principiou a laborar no cérebro daquele pai extremoso e a monopolizar-lhe as poucas horas que o trabalho não absorvia.

De vez em quando o encontravam os amigos deveras preocupado, o que, sendo nele para estranhar, excitava curiosidades e receio e desafiava interrogações.

O reitor foi um dos que mais se importou com a preocupação do nosso homem.

Era este reitor um padre velho e dado, que há muito conseguira na paróquia transformar em amigos todos os fregueses. Tinha o Evangelho no coração - o que vale muito mais ainda do que tê-lo na cabeça.

A qualidade de egresso não tolhia o ser liberal de convicção. Era-o como poucos.
— Ó homem de Deus - disse pois o reitor um dia, resolvido deveras a sondar as profundezas daquele mistério - que tens tu há tempos a esta parte? Que empresa é essa em que me andas a cismar há tantos dias?
— Que quer, Sr. Padre Antônio? Um homem de família tem sempre em que cuidar; tem a sua vida e tem a dos filhos.

Foi a resposta que obteve.
— Ora essa! - insistiu o padre - Bem alegre te via eu, em tempos mais azados para tristezas, e bem alegres vejo muitos com bem outras razões para o contrário. Mas tu! Que mais queres? Tens bons haveres para deixares a teus filhos; mas, quando não os tivesses, sempre eram dois rapazes; e deixa lá, José; um homem é outra coisa que não é uma mulher; onde quer se arranja; toda a terra é sua; em toda a parte encontra o que fazer, e qualquer trabalho lhe está bem. Agora os pobres que vejo por ai com um rancho de raparigas, coitadinhas, que ficam mesmo ao desamparo de todo, se a sorte lhes roubar o pai... esses, sim, é que não sei como podem ter um momento de alegria; e contudo encontrá-los nas festas, que é um louvar a Deus.
— É assim, Sr. Reitor, eu sei que os há por aí mais infelizes do que eu, mas...
— Mas então, quem tem saúde e a quem Deus não falta com o pão nosso cotidiano, só deve erguer as mãos ao céu para lhe tecer louvores. Mareia a tua vida, que teus filhos não são nenhuns aleijados para precisarem pedir esmolas.
— Graças a Deus que não são, Sr. Reitor. O Pedro, sobretudo, não me dá cuidados. O Senhor fê-lo robusto e fero; é um homem para o trabalho; e quem pode trabalhar não precisa de outra herança. Pelo trabalho, e com a ajuda de Deus, fiz eu esta minha casa, que não é das piores, vamos; ele, com menos custo, a pode agora aumentar, se quiser. Mas o Daniel já não é assim. Aquilo é outra mãe - o Senhor a chame lá. Um dia de ceifa é bastante para mo matar. É a sorte dele que me dá cuidado.
-- Então é só isso? Ora valha-te Deus! É verdade. O pequeno é fraquito e decerto não pode com o trabalho do campo, mas... para que queres tu o dinheiro, José? Acaso não terás alguns centos de mil-réis ao canto da caixa para pôr o rapaz nos estudos? Não podes fazer dele um lavrador? Fá-lo padre, letrado ou médico, que não ficarás pobre com a despesa.

José das Dornas ao ouvir assim formulado o conselho do reitor sorriu com a visível satisfação que sempre experimentamos, vendo que um dos nossos pensamentos favoritos merece a aprovação de alguém, antes de lho revelarmos.
— Nisso mesmo pensava eu. Já me lembrou mandá-lo estudar, mas tinha cá certos escrúpulos.
— Escrúpulos! Valha-te não sei que diga! Pois ainda és desses tempos? Que escrúpulos podes ter em mandar ensinar teus filhos? Fazes-me lembrar um tio meu que nunca permitiu que as filhas aprendessem a ler; como se pela leitura se perdesse mais gente do que pela ignorância.
— Não é isso, Sr. Padre Antônio, não é isso o que eu quero dizer; mas custa-me dar a meus filhos uma educação desigual. Vê Vossa Senhoria. São irmãos e, mais tarde, o que tomar melhor carreira e se elevar pelo estudo, há de desprezar o que seguir a vida do pai, a ponto de que os filhos dum e doutro quase não se conhecerão: é o que mais vezes se vê. Não é uma injustiça que faço a Pedro a educação que der a Daniel?
— Homem de Deus, não há desigualdade verdadeira, senão a que separa o homem honrado do criminoso e mau. Essa sim, que é estabelecida por Deus, que, na hora solene, extremará os eleitos dos réprobos. Educa bem os teus filhos em qualquer carreira em que os encaminhes; educa-os segundo os princípios da virtude e da honra, e não os distanciará, acredita; porque, cumprindo cada um com o seu dever, serão ambos dignos um do outro e prontos apertarão as mãos onde quer que se encontrem. E no sentido mundano, julgas tu que fazes mais feliz Daniel, por o elevares a uma classe social acima da tua! Aí, homem, como viver enganado! o quinhão de dores e provações foi indistintamente repartido por todas as classes, sem privilégio de nenhuma. Há infortúnio e misérias que causam o tormento dos grandes e poderosos, e que os pobres e humildes nem experimentam, nem imaginam sequer. Grande nau grande tormenta: hás de ter ouvido dizer. Sabes que mais José? - concluiu o reitor - manda-me o rapaz lá por casa, que eu lhe irei ensinado o pouco que sei do latim, e deixa-te de malucar!

Com estas e idênticas razões foi o bom do padre convencendo José das Dornas, que nada mais veementemente desejava do que ser convencido - e, decorridos oito dias, via-se já Daniel passar, com os livros debaixo do braço, a caminho da casa do reitor.

(Primeiro capítulo do romance “As pupilas do Senhor Reitor”)


* Escritor e médico português.

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