sexta-feira, 27 de setembro de 2013

A vida e seus desafios

* Por José Carlos Ruy

Então ele não findou. Então ele saiu do cemitério sabendo que os tempos agora se uniam, de 2013 a 1958. Filho que era daquela Maria agoniada, nunca havia sido filho de Deus, apenas o seu renegado. Os tempos agora se ligavam como uma rebeldia. E para os rebeldes jamais existirá um fim”.

Este é o parágrafo final de um dos mais surpreendentes romances da nova safra: O filho renegado de Deus, de Urariano Mota (que a Bertrand Brasil acaba de publicar). O parágrafo funciona como a chave de ouro de um soneto, e ajuda a decifrar o significado da narrativa. Permite também localizar o narrador que, ao longo do romance, muitas vezes é proustianamente fugidio - ora é o menino Jimeralto e suas andanças ai por 1958, ora é o Jimeralto sessentão que remói as lembranças da meninice, ou então é Pedro, nome de guerra assumido durante a clandestinidade, sob a ditadura, na década de 1970.


As pontas do tempo e da memória se juntam naquele cemitério, e remetem ao passado composto pela história do povo trabalhador que ocupava a Vila Alegria - um beco de casinhas improvisadas, minúsculas, à beira da Avenida Nova do Recife, onde Jimeralto menino aprendeu a olhar a vida e a luta implacável pela sobrevivência e, sobretudo, pela conquista do reconhecimento da dignidade de cada um.


Há uma coletânea, publicada há alguns anos, cujo título é Os pobres na literatura brasileira, que se refere a uma galeria não muito extensa de personagens, que fica ainda menor quando se trata de autores que tiveram a vivência pessoal das histórias que narram. Não que isso seja determinante. A qualidade da narração vem primeiro da empatia e da capacidade de “colocar-se no lugar” do outro, do que propriamente da vivência direta (embora Graciliano Ramos insistisse na importância dessa vivência).


O filho renegado de Deus enriquece essa galeria com histórias que denotam o “pôr-se no lugar” do outro e também a vivência do narrado. Traz um conjunto de personagens memoráveis - os Valfridos, Cecílio, Manoel de Carvalho (o “espírito”), Maciel, o tio. As inúmeras Marias (das Dores, da Conceição, dos Prazeres, da Silva, de José, de Totonho, do Zezo, ou as que “se tornavam identidades de uma só pessoa pelas casinhas onde moravam”) andam juntas com Esmeralda, Lúcia, Geraldina, Lídia... e tantas mulheres para as quais a feminilidade “era um sofrimento”
.

No beco moravam trabalhadores que pegavam pesado no cais do Recife. Que enfrentavam a “química da necessidade” regulando o leite, o pão, o açúcar, o café, tirando o máximo do dinheiro escasso. Pobres de subúrbio nos quais a “química da necessidade” fazia de toda manifestação de carinho e humanidade prova de fraqueza, típicas de fêmea ou sinalizadoras de caráter pouco macho dos homens, sintoma “de efeminado, que até nas mulheres era feio”.


Maria e Filadelfo compõem, desde agora, a galeria dos “pobres na literatura”. Maria que, na opinião dos demais, “era o que era”, isto é, “sua pessoa física apenas, carnes, ossos e roupas”, somente a “mulher - e aqui vai um gênero e universo de entendimento bárbaro -, gorda, baixinha, com um aspecto, ar, que não devia ser o da sua condição”.


Fora do padrão de beleza dominante, “não passava de ser uma ‘albacora’”, peixe que não era a “dieta ideal para os comedores de carne bovina”, só fazendo parte do cardápio “nas sextas-feiras santas, em sinal de penitência”.


Maria era mulher, contudo, que não aceitava - isso “me repugna” - “qualquer piedade para a sua condição”. Antes, era “mulher brava, de coragem e de raiva”, brava como aqueles que “os fracos não temem, porque sabem que essa bravura se dirige somente contra o injusto mais forte”. Mas mãe carinhosa de quem o Jimeralto adulto lembraria como sendo, para ele, “absoluta suavidade”.


Filadelfo, o marido, o pai, era o oposto. Formado na pedagogia da dor, era duro e violento. Mulato escuro, cujo pai - desconhecido - era um português e a mãe, negra, prostituta, descendente de escravos. Era “filho do chicote com uma negra”, atarracado, “baixo, menos por gênese que pela fome passada na infância”. Trabalhava no cais onde começou a aprender com marinheiros estadunidenses o idioma inglês que o distinguiria entre os seus e mesmo entre a elite branca do Recife por falar melhor que eles o idioma do dominador.


Dom traduzido em bens simbólicos - dólares, cigarros, uísque, camisas de estampas coloridas - que prometiam a ascensão mulata que embranquecia o negro pelas que “punha a seu redor: casas, dinheiro, roupas, mulher branca ou tida como branca”.


O relato entra, neste ponto, numa descrição crua, e sensível, do dominante e disfarçado (envergonhado?) racismo brasileiro. “Juntar coisas que por tradição eram de branco” fazia do mulato “um branco meio impuro branco”. Ao contrário do “negro de alma branca”, um mulato de posses era um “branco de epiderme por acréscimo”.


Com esta expressão de fina literatura, Urariano Mota formula a crueza do racismo brasileiro onde os sinais de ascensão social fazem da pele escura do mulato uma espécie de roupa com a capacidade de mudar a cor da pele daquele ser humano...


Mas Filadelfo era obrigado a ocupar “seu lugar”, o lugar do negro. Só podia entrar nas mansões pela porta dos fundos; indicado para ser o guia do americano Ted Kennedy que, com a mulher, visitava o Recife, enfrentou mas não engoliu a designação de “macaco” e, altivamente, deixou o casal na mão, recusando o serviço que muitos cobiçam. “Quanta petulância pra um mundo fundado e assentado na desigualdade”.


O que une Maria e Filadelfo, as Marias, Valfridos e tanta gente, é a busca da dignidade. Este é o segredo que faz de O filho renegado de Deus um romance que se destaca e cuja leitura se impõe.


Conta a história de gente tão pobre cuja existência deixa escassos traços materiais, como fotografias e outros documentos. O registro de sua existência fica na memória! Urariano Mota permite recordar, neste ponto, uma passagem do discurso pronunciado por José Saramago na Academia Sueca, ao receber o Nobel de literatura. O escritor português garantiu, então, que todos os homens têm suas histórias, embora nem todas sejam contadas.


Urariano Mota faz a sua parte. Num livro anterior, Soledad no Recife (2009) contou a história de Soledad Barret, a militante comunista de origem paraguaia torpemente assassinada. Em O filho renegado de Deus conta história semelhante, de gente que não tem o reconhecimento da heroína morta pela repressão em 1973 mas que, na outra ponta da luta contra a opressão, busca resolver anonimamente a “química da vida” e alcançar o reconhecimento de sua dignidade de seres humanos.


Mas Urariano Mota não se ilude; não confunde a vida imaginada no pensamento, com o vivido. “A vida não era conceito”; ela “sempre pula do conceito, a vida é mais magnifica e surpreendente que o maior e melhor enquadramento dialético”. Com este material e esta certeza, produziu um romance memorável.

* Jornalista.


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