segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Arte da embalagem

* Por Daniel Santos


Saí certa noite bem tarde da casa de amigos e vi que uma folha de jornal encobria o corpo do mendigo deitado no passeio. Encardido de notícias, ele a usava como uma manta acolhedora, mas já amarrotada.

No entanto, o vento logo tomou-lhe o agasalho que, à força de lufadas quase murros, dobrou-se geométrico como envelope de previsível destinatário. Expediu-se, então, pela avenida à procura do endereço.

Mas o vento abrandou, distendeu a folha e a soprou mais alto. Ela voou como gaivota tablóide de asas retintas, mas já cansadas, que notícias  sustentam o vôo por um só dia. Faminta de novidades, rumou à praia.

Ali, a folha pairou sobre as ondas. Mais abaixo, cardumes; tantos, que pareciam provocar. A gaivota mergulhou, então, como uma verruma: perfunctória, implacável, voraz, encontrou o peixe que devia embrulhar.

Na calçada, o mendigo despertou sem entender bem o sucedido: quase sem ar, arroxeado por um sufoco progressivo, ele a custo se desfez do jornal que, enrolado agora à sua garganta, tingia de azul sua asfixia.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.


 

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