segunda-feira, 24 de junho de 2013

Quando se joga o futuro no lixo


A Literatura – seja ela de ficção ou não – tem o condão de identificar e de descrever, com precisão e credibilidade, comportamentos usuais de maneira mais explícita e completa do que qualquer estudioso da matéria, quer seja antropólogo, sociólogo,  etólogo e vai por aí afora. O escritor, nesse aspecto, leva vantagem até sobre o jornalista. Enquanto este tem por foco fatos recentíssimos, e que acabem de ocorrer (notícias velhas não fazem parte de seu metier), que tem o dever de reproduzir de maneira fidelíssima, sem acrescentar e nem omitir detalhe algum, o literato, ao compor seus personagens e ao elaborar seus enredos, não tem nenhum impeditivo do tipo. Tanto pode se valer de ocorrências recentes, do mesmo dia em que engendra suas histórias, por exemplo, quanto de passado remotíssimo. Nada e ninguém o impedem

Outra vantagem que leva é a de poder juntar características de inúmeras pessoas numa só. E de somar várias histórias que testemunhou, ouviu ou leu, pinçando de cada uma delas o que mais lhe interesse ao compor seu enredo, acrescentando, até mesmo, coisas que nunca aconteceram, mas que poderiam ter acontecido, se julgar necessário. Seu único parâmetro, seu limite, que nem chega a ser obstáculo, é que o produto final tenha verossimilhança. Se for fantasioso demais cairá em descrédito junto ao leitor. Terá fracassado em escrever uma história interessante e proveitosa para quem lê.

Tomemos como exemplo o tratamento que se dá às crianças, não importa de que lugar ou de que tempo. Quando geramos um filho, assumimos uma responsabilidade imensa, que é a de criá-lo, educá-lo, transmitir-lhe conhecimentos básicos de sobrevivência, além de valores essenciais para seu crescimento e desenvolvimento harmonioso e seu convívio sem conflitos em sociedade. Só conseguiremos fazer isso, porém, com relativa eficácia, se tivermos sido educados corretamente (nos padrões considerados como tal pela sociedade, que não deixam de ser ambíguos, pois não há parâmetros rigorosamente exatos nesse sentido). Ninguém transmite aos outros o que não sabe.    

O problema dos filhos, ao contrário do que alguns (diria muitos) pensam, não está no seu sustento (ou apenas nele). Mesmo que eles nasçam em famílias extremamente carentes, de uma maneira ou de outra, sempre haverá um jeito de alimentá-los, vesti-los e protegê-los. É como diz o ditado: “onde comem dois, comem três, quatro ou mais”. Se bem ou mal, claro, são outros quinhentos. O “x” da questão, contudo, não é este. É como educá-los. Nenhuma criança vem ao mundo com um manual de instruções, como se fosse algum sofisticado robô de alta tecnologia, que funcione corretamente se for manipulada como recomenda o fabricante. É preciso levar em conta seus instintos, para direcioná-los adequadamente, estimulando e desenvolvendo os bons e reprimindo os maus. Suas emoções contam, e muito, assim como seu temperamento.

O ambiente em que as criarmos pode ser determinante para o seu futuro. Pode, note bem, mas não necessariamente. Se essas crianças forem criadas em um lar harmonioso e equilibrado, onde impere o respeito e, sobretudo, o amor, a probabilidade maior é que se tornem adultos responsáveis, sensíveis e preocupados com os direitos e o bem estar do próximo. Não se trata, porém, de nenhuma certeza. Muitos bandidos cruéis e sanguinários foram criados em lares que simulariam o paraíso, mas desvirtuaram, por uma razão ou por outra.

A probabilidade, porém, é que esse tipo de desvio não ocorra, embora, reitero, não seja nenhuma certeza. Esta, a rigor, nunca existe. Mas se a criança for criada em ambientes de agressividade, vício, desrespeito, irresponsabilidade e desídia, as chances de se tornar marginal, sádica e perversa, são imensas, “quase” absolutas. Claro que também não se trata, torno a insistir, de nenhuma certeza. Há casos e mais casos de pessoas criadas em ambientes “podres”, como este, se tornarem adultos equilibrados, úteis e exemplares, embora sejam raros.

Em minha avaliação pessoal, de ávido e compulsivo leitor, o escritor que melhor tratou do assunto de crianças abandonadas, órfãs, exploradas em todos os sentidos, maltratadas e agredidas, foi o romancista inglês Charles Dickens. Há quem veja exagero em seus personagens e enredos. Discordo. Se ele exagerou em algum ponto (e entendo que não o fez) foi no sentido de tornar menos cruéis os ambientes em que os meninos e meninas que retratou – certamente baseado em casos concretos, posto que não específicos – foram criados. E de fazer com que as agruras, sofrimentos e dramas que lhes atribuiu fossem menores do que seria de se esperar nas circunstâncias que imaginou.       

A criança abandonada tem sido, através dos anos, tema preferido dos políticos em vésperas de eleições e de intelectuais que nem sempre conhecem de perto esse drama. Mas de ação concreta para acabar com o problema pouquíssima coisa tem sido feita. O que é realizado, em geral, acaba sendo obra de uns poucos beneméritos, e por sua própria conta e risco. Às vezes suas tentativas de resgate e regeneração funcionam. Outras tantas, não. É impossível, por exemplo, apagar da memória de uma criança que passou toda a infância sendo amedrontada, espancada, explorada (não raro sexualmente) e quase sempre por parentes – pais, padrastos, tios, primos etc. – que deveriam protegê-las e cuidar delas, todos esses dramas. Algumas, mesmo carregando pelo resto da vida esses terríveis traumas, se tornam adultos exemplares. Outras (a maioria?)... viram bandidos, feras insensíveis que pedimos aos céus que nunca cruzem nossos caminhos.

Contingentes e mais contingentes de crianças abandonadas, desnutridas, desesperançadas, que desde muito cedo têm que conviver com a violência, o abuso sexual e a criminalidade, vão se multiplicando pelas ruas das grandes cidades mundo afora. O que fazer com essas pessoas desajustadas, e não por culpa própria, mas vítimas de pais irresponsáveis, que jamais poderiam ou deveriam gerar quem quer que fosse? Jogá-las “no lixo” como artefatos defeituosos? Mas são pessoas! Claro que a sociedade tem o direito de se proteger contra os instintos criminosos das mais perversas, como as que incendeiam pessoas apenas por não terem dinheiro suficiente para ser roubado por elas ou praticam outras atrocidades, tão ou mais hediondas que essa.

Entendo que devemos continuar trabalhando para resgatar as que ainda julguemos resgatáveis e confiar no resultado do trabalho, desde que tenhamos certeza que este é, além de contínuo e ininterrupto, bem feito. Até porque, como disse o escritor Elias Canetti, “se eu duvidasse, se eu tivesse realmente desistido da esperança, não poderia mais viver”. Porquanto abrir mão dessas pessoas, das potencialmente recuperáveis, equivaleria a jogar expressiva parcela de futuro da nossa espécie na lata de lixo.

Boa leitura.


O Editor.

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Um comentário:

  1. Bonito de escrever, sendo que até ler incomoda. Eu jogaria no lixo, sem pestanejar. O ruim é que o lixo mal cuidado retorna, sendo desvantajosa essa atitude. Assim, cuidar da pessoa sem conserto não é ser justo, é ser egoísta para se precaver das suas malignidades recidivantes.

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