segunda-feira, 17 de junho de 2013

O filho do fogo

* Por Daniel Santos


Num dos primeiros dias de trabalho na biblioteca, a estagiária sobressaltou-se com o cheiro de papel queimado que vinha, certamente, da sala do acervo, onde milhares de livros aguardavam eventuais leitores.

Correu, então, para lá e, ao abrir a porta, quase perdeu os sentidos diante da imensa fornalha em que tudo ali se transformara mas, apesar de muito gritar por socorro, a ninguém mais parecia impressionar o sinistro.

Deram-lhe, então, água com açúcar e, depois de acalmada, a chefe revelou-lhe o conhecimento que  transformou a estagiária em profissional: na verdade, o fogo nada destruíra, apenas servira de alimento aos livros!

“Porque assim é. Desde sempre. O escritor ousa penetrar o terreno do insondável e, ali, infringe as leis mais altas. Escolhe com critério o material comburente a que dará sentido e nos oferece o livro”, explicou.

Disse ainda à aturdida estagiária que, “desse tal fogo, iluminam-se  razão e  consciência, e por isso não vivemos todos na mais completa treva, naquele estado demais improvável em que nascemos e vingamos”.

Iluminada por tal revelação, a moça voltou à lide entre livros que, quietinhos nas estantes, espreitavam leitores com inflamável expectativa. Queriam o toque da palma morna para arder e produzir combustão.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.


Um comentário:

  1. Que maravilha de análise. Encantador. Tão comburente que dá vontade atear fogo na mente e nunca mais deixar apagar. Compartilho!

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