quarta-feira, 26 de junho de 2013

"Eu não tenho onde morar..."

A apregoada modernidade, que o ex-presidente Fernando Collor disse que estava implantando no País, agravou um problema social que já era gravíssimo, e que, apesar de inegáveis avanços ocorridos nos últimos dez anos, persiste. Refiro-me à carência habitacional. Nem mesmo tenho em mente moradias mambembes, insalubres, construídas toscamente em áreas de risco e nem as tantas favelas, várias das quais mais populosas do que muitas badaladas metrópoles mundiais. Afinal, seus moradores, bem ou mal, pelo menos têm onde morar.

Meu foco é a multidão de pessoas sem teto – conhecidas no mundo todo pela expressão inglesa “homeless”, já que o fenômeno é típico, em maior ou menor grau, da maioria das grandes cidades Planeta afora – que vegeta, sem perspectivas ou esperanças, pelas ruas, faminta, doente, suja, viciada e dando graças a Deus a cada dia que sobrevive. A revista “Dignitas Salutis”, do Sindicato dos Hospitais, Clínicas, Casas de Saúde, Laboratórios de Pesquisas e Análises Clínicas, Instituições Beneficentes, Religiosas e Filantrópicas do Estado de São Paulo, em sua edição dezembro/janeiro de 1993 (o órgão era bimestral e nem sei se ainda existe), trouxe uma reportagem contundente sobre essa gente, intitulada “Vira-lata humano”.

Algum leitor, possivelmente, deve estar comentando, mal humorado (e o mau humor é uma constante nestes dias de ira e de tensão): “Pô! Esse cara não tem mais assunto para escrever? Lá vem ele com matéria de há vinte anos! Muita água rolou por baixo da ponte nesse tempo todo”. Rolou mesmo. Mas a situação habitacional, mundo afora (e, claro, a brasileira, que é a que nos importa diretamente) pouco ou nada mudou para melhor. Em alguns casos, até se agravou por falta de providências. Afinal, problema adiado é problema agravado. O assunto, por ser incômodo, raramente vem à baila na imprensa, a não ser quando grupos de sem teto promovem invasões a imóveis desocupados e abandonados há muito tempo..

A esse propósito, lembro-me de um incidente ocorrido comigo quando trabalhava em determinado jornal (cujo nome não vou citar), que me marcou bastante. Entre outras atividades que exercia nessa empresa, uma era a de articulista fixo e diário. Já naquele tempo eu tinha a mania, que conservo até hoje, de meter o bedelho nos temas mais variados possíveis e, um dos meus focos, por sinal o principal, era o dos problemas sociais que envolviam (e envolvem) os moradores das grandes cidades. Pois bem, certo dia fui chamado à sala do editor-chefe para uma conversa formal. Achei que, no mínimo, receberia uma promoção, dado o grande volume de cartas dos leitores (naquele tempo ainda não havia e-mails), elogiando meus artigos. Estava enganado. Na verdade, levei foi uma dura daquelas do chefão. Ele ordenou (e não pediu) que eu suavizasse o teor dos meus textos, pois eles “estragavam o café da manhã” dos assinantes do jornal. Disse exatamente isso, sem tirar e nem pôr e sem ficar vermelho com a idiotice contida nessa ordem.

Claro que não atendi seu ultimato e nunca mais fui chamado às falas, pelo menos por esse motivo. Mas o incidente me marcou, pelo cinismo dos que preferiam se manter alienados dos verdadeiros problemas da sociedade, em vez de fazerem alguma coisa, qualquer coisa, para resolvê-los. Mas, voltando à matéria da revista, que citei, sumamente objetiva, informo que ela foi inspirada em um poema de um desses seres abandonados pelo mundo, que costumava dormir nas calçadas da gigantesca e não raro cruel cidade de São Paulo, e que se autodenominava Anjo Dias, nome fictício de alguém que, oficialmente, sequer existia, pois não dispunha de documentos, e que diz:

“Todos os dias acordo
sem saber que dia é.
Tenho que comer,
fazer xixi,
arrumar outro lugar para dormir.

Acho que é só.
Desisti de tentar não causar medo, nojo.
Diante de Deus não sou nojento.

Diante de tudo, sou corajoso,
mas quem liga pra isso?
To nas ruas feito um bicho.

Sou vira-lata humano./Quem liga pra isso?”.
  
Não se trata, como muitos queriam na ocasião (e querem ainda hoje) dar a entender, de um caso isolado. É impossível apurar com exatidão quantos são os “homeless” apenas em São Paulo. quem estime em cem mil. Outros arriscam-se a contabilizar meio milhão de pessoas. Quem sabe? E a quantidade importa? Um único ser humano que seja, vivendo nestas condições, já é motivo de vergonha para toda a comunidade. E não somente isto. Para que existem as instituições oficiais de amparo social? Onde tais entidades aplicam suas verbas, se um indivíduo, como no caso de Anjo Dias, quando se vê desempregado, fica na dependência da comida que encontra na lata do lixo para sobreviver? “Quem liga pra isso?”, pergunta o sem-teto. Certamente não os assinantes do jornal em que eu trabalhava e que reclamavam que meus artigos “estragavam seu café da manhã”. E muito menos os que estão gastando rios de dinheiro para assistir, nos novos e primorosos estádios (superfaturados, claro) os jogos da Copa das Confederações. Nem os políticos, que usam o tema miséria para discursos carregados de retórica, em vésperas de campanha eleitoral, mas que certamente jamais viram cara a cara um “homeless” urbano.

Na referida matéria, a socióloga Cristina Maria Costa Jorge, diretora-geral da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, constatou: “Desde a última década, o perfil do sem-teto vem mudando com uma intensidade muito grande. Até então, ele era aquele indivíduo sem inserção na sociedade que as metrópoles mantinham como uma massa de subempregados. Com o acirramento da crise econômica, o próprio trabalhador, que recebia um ou dois salários-mínimos, foi expulso do seu barraco e passou a se abrigar debaixo dos viadutos”. Com todos os avanços que o Brasil teve, de 1993 para cá, esse perfil praticamente não mudou. Ou mudou?!

Apesar de trágica, há quem extraia poesia dessa situação, a mostrar que o homem, mesmo desprotegido e alijado da sua dignidade, não abre mão da sua percepção. Bom exemplo são estes versos de um sem-teto anônimo:

“E quem vem de outro sonho
feliz de cidade
aprende depressa a chamar-te
de realidade
porque és o avesso do avesso
do avesso do avesso...”

Tanto o assunto, incômodo para muitos jornalistas e principalmente para uma horda de burguesinhos insensíveis, quanto os toscos (mas vividos) versos de Anjo Dias, trazem-me à memória esta magnífica composição do não menos magnífico e saudoso Dorival Caymi, com que encerro estas (incômodas?) reflexões:

“Eu não tenho onde morar
É por isso que eu moro na areia
Eu nasci pequenininho
Como todo mundo nasceu
Todo mundo mora direito
Quem mora torto sou eu
Eu não tenho onde morar
É por isso que eu moro na areia
Vivo na beira da praia
Com a sorte que Deus me deu
Maria mora com as outras
Quem paga o quarto sou eu
Eu não tenho onde morar
É por isso que eu moro na areia”.

Boa leitura.


O Editor.

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Um comentário:

  1. Dolorido assunto. Conheço os sem teto doentes. Os versos do meio são de Sampa. Você omitiu intencionalmente?

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