domingo, 23 de junho de 2013

Adiamento

* Por Fernando Pessoa

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã
e assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada, hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva
o sono da minha vida real, intercalado,
o cansaço antecipado e infinito,
um cansaço do mundo para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo,
mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
a minha vida triunfar-se-á,
todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?

Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...


(Sob o heterônimo de Álvaro Campos).



* Poeta português caracterizado pelos heterônimos

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