segunda-feira, 20 de maio de 2013


Em ponto de neve

* Por Daniel Santos


Nas últimas semanas de gestação de minha mãe, ela e as demais cerzideiras da fábrica de tecidos, suas amigas, se deram conta: eu  viria à luz no início de agosto, mas tinha já de tudo. Ou quase: faltava o cobertor.

O lapso era compreensível numa cidade quente por tradição. Assim, o salário de meus pais cobria apenas as prioridades. Quanto aos agasalhos de inverno... Ah, dava-se um jeito mais tarde, os parentes nos acudiriam!

De fato, pouco antes de nascer, ganhei sapatinhos e gorro de uma lã tão macia que, no dizer de uma tia muito inspirada, parecia “clara em ponto de neve”. De qualquer forma, ninguém esquecia, faltava o cobertor.

Minha mãe, criada no temor a Deus e reverente a todo tipo de autoridade, venceu a timidez que sempre a franzira de frustrações e pediu certa vez ao chefe de seção um bom corte de lã para me acolher. Em vão.

A fábrica não ia bem, corria risco falimentar e, além disso, o fiscal da metragem de tecidos era um cão de austero: qualquer desvio de material, disse o chefe, punia-se com a dispensa sumária do responsável.

A fiscalização cedia às cerzideiras retalhos de lã defeituosos, mas eram sempre pequenos demais. No entanto, uma das amigas de minha mãe encontrou a solução: “Se juntarmos todos os retalhos, teremos o cobertor”.

E assim fizeram. Graças a essa corrente de solidariedade ganhei o que me faltava: uma manta multicolorida de lã. Em ponto de neve... que logo ganhou consistência em mim e resultou nos meus primeiros suspiros.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

Um comentário:

  1. A união faz a força e o calor do cobertor. Nos dias que correm já não se vê tal solidariedade. Uma boa história.

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