segunda-feira, 27 de maio de 2013

À mesa, como convém

* Por Daniel Santos


Através da persiana, a manhã chega em fatias à mesa do café, estende uma rica toalha de debruns dourados e dispõe nos pratos porções amenas de luz como a servir a uma casta especial estrato da aristocracia.  


Mas, não. Uma família, a mais simples, senta-se para a primeira refeição com o entusiasmo dos atos inaugurais, sem perceber a solenidade que há na cena, e o que mais se ouve é o mastigar poderoso dos maxilares.

Lâminas de afiado critério desbastam excessos do clarão que cega tudo lá fora sem conceder a mínima sombra e permitem apenas o ingresso  de uma dose de claridade, suficiente para animar espíritos e organismos.

E é só. Tudo como devia ser. Nenhum sobressalto, sequer o mais sutil espasmo. À mesa, nada se perturba nessa hora em que mãos atarefadas cumprem o antiqüíssimo gesto de partir o pão e levá-lo à boca.

Enquanto isso, o fulgor persiste e progride pelo chão, teto, paredes e, até na pele das pessoas, larga uma tintura opalescente. Tudo exulta, agora, como se fora a obra máxima de um ourives no dia mais inspirado.

E, no entanto, é gente humilde tomando a primeira xícara de café antes de sair às ruas e se engalfinhar de vez com o cotidiano, cravar os dentes na sua corcova e impor-lhe rédeas para que tenha, afinal, um curso.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

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