quarta-feira, 24 de abril de 2013


Princípios em conflito

* Por Mara Narciso

Quando mergulho no comer compulsivo, pior à noite, estou buscando a serenidade que perdi no transcorrer do dia. Alimentar em excesso é meu refúgio, e não me faço de rogada. À meia luz, vou buscando os alimentos disponíveis e com eles vou fazendo a festa, a minha festa solitária de mulher madura e insatisfeita. Não quero me ver e nem ver o resultado da minha briga com meus sentimentos. Por arma evito o espelho. É assim que consigo administrar as dúvidas que carrego comigo.

Como professora do ensino básico, eu procurei educá-lo dentro dos princípios cristãos, mostrando que vale a pena ser bom, respeitar a autoridade e a propriedade, aceitar o trabalho e amar ao próximo. Eu ensinei aquele menininho a ler e escrever, mas também a cuidar de si, da casa, da escola, da cidade, do que é de todos. Ensinei-lhe bons sentimentos e despertei-lhe a curiosidade para avançar nos estudos. Ele mora na favela, local onde está incrustada a escola que leciono. Nela sou respeitada. Sinto isso quando chego e quando saio. Ganho pouco e tenho vida difícil, pois a condição de professora é sabida por todos. Apesar dos percalços, ensino há quase 25 anos, e pouco reclamo. Embora queira, tenho medo de me aposentar. Deveria, no entanto, ao sair da escola a cada dia, deixar lá os meus problemas e dilemas profissionais. Não consigo deixar.

Os meninos-maus da comunidade foram meus alunos, e agora eu ensino aos filhos deles. De vez em quando aparecem por lá. Chegam e logo se impõem pela aparência e atitudes: forçam o olhar, intimidando. Algumas vezes chegam em dupla ou trinca. Um deles, em especial, perturba-me quando se aproxima de mim, fora da sala de aula. É o líder do grupo. Tem 26 anos e o seu filho de sete é meu aluno. A maneira de o chefe se comportar muda completamente quando estamos a sós. Sugere um menino frágil que aspira por atenção e cuidados. Tem um olhar pidão e voz sedutora que me sensibilizam para o que de fato quer: ser compreendido e aceito. Sem a presença de olhares indiscretos – os acompanhantes ficaram lá fora -, ficamos conversando. Confessa seus medos e dúvidas e fala o quanto lhe custa manter agarrada a face aquela imagem de maldade. Mesmo quando não quer ser cruel precisa sê-lo, para se manter no comando.

Conta como gostaria, caso pudesse, de largar aquela vida de crimes e ser alguém comum e livre. A fama e o poder eram alvos a ser alcançados, e como os tem, já não os quer. É prisioneiro de uma situação que criou e sabe que só sai dela morto. Também viverá pouco. Está passando da média de idade de encontrar o fim: prisão ou cemitério. É conhecido em todo o bairro. Quem o vê abaixa os olhos com medo. Tal gesto o faz explodir-se em confiança. As disputas por território são constantes, além de problemas com a polícia.

Entre ele e eu há uma proximidade constrangedora. Por aceitar seus crimes, entro em parafuso. Fico em crise quando compreendo seu lado vulnerável. Confunde-me ver que não é uma estátua. Conta-me seus pavores. Ouvindo-o narrar detalhes das arrumações junto aos rivais e a lei, fico dividida. O momento de carinho de mãe com seu filho errado ou a busca da ovelha desgarrada acontece entre professora e ex-aluno. Eu o tranqüilizo, alisando seus cabelos, e então ele se vai, quase relaxado até a porta, e não mais. Amarra na cara a máscara da coragem, reassume a condição de agente do mal, e some na quase sombra, seguido pelos seus comparsas.

Já anoiteceu. As últimas crianças deixaram a escola. Pego minhas coisas e saio em passos rápidos. Sigo para casa. Não, não abandonei meus princípios, bases da minha vida e conduta. Reflito, recordando-me dos tantos questionamentos. Depois de muito pensar, minhas certezas já não são as mesmas: eu não o vejo como um menino-mau. Consigo enxergar um lado bom, e me entupo de comida em busca de alívio para esta dualidade. Meu relato é sincero e imparcial. Enquanto meu peso cresce, reconheço que não preciso convencer a ninguém sobre aquilo que sinto. Atirem pedras. Não serei perdoada por suportar o lado errado. Sei que qualquer dia ele voltará à escola para outra sessão de humanização. E ficarei feliz em ser capaz de atendê-lo uma vez mais.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   

2 comentários:

  1. A compulsão alimentar e possivelmente a obesidade mórbida como consequências nefastas das mazelas sociais. Fictício ou não, um relato pungente e certamente muito próximo do que você deve vivenciar diariamente em seu consultório. Parabéns, Mara, por mais este texto-denúncia. Abraços.

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    1. Usei o pretexto do comer compulsivo para mostrar o outro lado dos traficantes de drogas, àquele que não é visto. Agradeço a atenção e carinho, Marcelo.

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