terça-feira, 23 de abril de 2013


Ilha de Deus

*Por José Calvino

"Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso." Fernando Pessoa

“(...) Resolvera pescar na maré, embaixo da ponte velha do Pina. Lá encontrava diversos colegas, filhos de pescadores. Com uns arames na mão na maior agilidade pegando unha de véio, mariscos, tiravam ostras, cortavam os pés na ribeira marinha, mas saravam de imediato por causa da água salgada. Homens, mulheres, meninos e meninas pobres, se encontravam embaixo da Ponte Velha do Pina, a pescarem nos cânticos de alegria...”.

Saíram-se beijando. Alvo juntava um pouco de areia no pé direito com ajuda do pé esquerdo e jogava-a no ar e pegava-a com a mão direita. Cabocla o copiava, como duas crianças a brincarem na praia. Os raios solares, na Ribeira Marinha dos Arrecifes, penetravam no casal que se divertia esquecido da miséria do mundo, convivendo com a natureza. Vez por outra desciam para tomar banho, e andavam sobre a areia, brincando do“jogo da areia”; tudo respirava a poesia e a momentos de alegria e conforto à matéria e ao espírito...

Branco, tio de Alvo, ofereceu para que este fosse morar em Casa Forte com ele, e ter ‘aquela educação’ que deu aos seus primos, todos bem formados, inclusive um deles era padre. Tinha vocação e digno para a vida sacerdotal, bem como as qualidades morais e intelectuais exigidas pela Igreja Católica. O seu tio Branco elogiava o seu filho ad maiorem Dei gloriam:
- Não há na terra autoridade maior, nem missão mais sublime do que a do padre...

Alvo agradeceu a oferta da Casa Forte do tio e disse:
- Tio, irei morar na Ilha, até quando Deus consentir, embora o apelido desta Ilha, sabe qual é?
- Não.
- Chamam-na, apropriadamente, de Ilha sem Deus, neste aristocrático bairro da Zona Sul...
Enérgico, através de um bote, chega à Ilha dos Pescadores, mais conhecida por “Ilha sem Deus”. Ao descerem, do bote... ‘Chocolate’, preocupado porque quando estava na ressaca da bebedeira, aquela Ilha era um céu para ele... ali era o seu esconderijo quando a polícia estava em seu encalço, quando das suas aventuras no tráfico de maconha, na Zona do Pina e do Recife.” ( O grande comandante, 1981, pp. 21-42).
A Ilha de Deus está situada no Bairro da Imbiribeira, Recife-PE, não dispondo de infra estrutura urbana básica de urbanização, o sustento era prioritariamente tirado da pesca. Atualmente, o mais significativo exemplar deste ecossistema é o grande Manguezal do Pina, área estuarina ilhada pela densa malha urbana da cidade do Recife. A comunidade da Ilha de Deus localiza-se nesta grande área verde. Morar na Ilha de Deus é, sobretudo morar no mangue.

Em 1981, lancei o meu segundo livro “O grande comandante”, através do qual iniciei esta crônica com alguns trechos salteados.

Falando com alguns moradores da Ilha, ligados ao continente por uma ponte sobre o Rio Jordão, eles foram quase unânimes em afirmar que os políticos só aparecem em época de eleição à caça de votos. Em 1983, um deles chegou dizendo que até então não conhecia a ilha, e pediu ao povo que não chamasse mais o lugar de Ilha sem Deus. Um secretário de Estado preocupou-se apenas com ações assistencialistas como fez, por exemplo, entregando R$ 10 a um ilhéu.

Em 1992 lancei a 2ª edição do referido livro, a Ilha ainda era linda, mas o ambiente continuava insalubre e malcheiroso. Gente e ratos dividiam o mesmo espaço.

Este ano, tive o bel-prazer de rever a Ilha com outro aspecto e conhecer Berenice Vitorino da Silva, 75 anos de idade, popularmente conhecida como Dona Beró, que contou muita história da comunidade. Uma delas relembramos do que sempre dizia o ex-governador Agamenon Magalhães: “Pobre de Macacos prá lá”! “Quem não pode viver, morre”! Beró continuou: “ No governo de Agamenon Magalhães nós fomos expulsos daqui. Eu era muito pequena, mas lembro do desespero da minha mãe que não sabia como iríamos sobreviver longe do mangue. Daqui tirávamos todo o nosso sustento, como é até hoje. Nunca nos desligamos daqui. Conseguimos voltar depois de 30 anos... E, vibrando, disse: “Só saio daqui morta”. Observei o seu amor e o sentimento de felicidade por ver um sonho quase realizado. Ela é autora da canção: “Quem te viu, quem te vê, quem te verá...”:

“Hoje eu vejo a Ilha prosperar... De barco, de remo e até ponte de pau, hoje eu vejo uma ponte colossal//Quem te viu, quem te vê, quem te verá. Hoje eu vejo a ilha prosperar.../ Palafita que um dia aqui reinou, hoje ta dando adeus ao seu senhor//Quem te viu, quem te vê, quem te verá. Hoje eu vejo a ilha prosperar.../Quem não acreditava e duvidou, hoje vê o lugar que Deus mudou”.

*Escritor, poeta e teatrólogo. Blog Fiteiro Cultural – HTTP://josecalvino.blogspot.com/

Um comentário:

  1. O mar pode até tirar, mas dá muito mais. Há uma música que diz "É doce morrer no mar", acho que de Dorival Caymmi. Melhor ainda é viver no mar e do mar. Saudade!

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