quarta-feira, 17 de abril de 2013


Cometi um erro, admito


* Por Mara Narciso

No norte de Minas há cidades pobres, recém-emancipadas, onde vivem crianças carentes e desnutridas, junto com seus pais modestos e na mesma situação nutricional. A desnutrição pode impedir o crescimento dessas crianças que se mostram bem menores do que outras da mesma idade. As mães ficam aflitas em ver o tempo passar e a criança não se desenvolver. Elas mesmas, pequenas e magras, chegam a Montes Claros, a maior cidade da região, trazendo os filhos para tratamento. É o caso de Tereza, mãe de Cássia. Com a ajuda da Secretaria de Saúde da sua cidade, veio com a filha verificar a causa de ela estar tão pequena. Tem oito anos e parece ter quatro. Olhar esperto, costelas visíveis, a menina de cabelos alourados, típicos de quem passa fome, segue as determinações do médico, no caso eu, que a examino.

Mesmo diante das evidências de falta de crescimento devido à desnutrição, é preciso descartar outras causas. Solicitei exames de sangue e radiografia da mão, para verificar a idade óssea, ou seja, o amadurecimento do esqueleto. É tão difícil e caro vir de tão longe, tudo está tão atrasado, o tempo urge. Então, fica-se encurralado entre melhorar a alimentação (se isso não fosse um delírio) e verificar se o crescimento acontece, ou se fazer já um estudo mais amplo. O teste de hormônio do crescimento se faz necessário devido à grande defasagem, com estatura fora do gráfico. Espera-se que haja falta desse hormônio. O correto é o valor de 0 a 5, sendo que estando zero pode ser normal. Então se faz o teste da clonidina, ou outro teste de estímulo qualquer, para ver se aumenta para 7. É arriscado porque esse medicamento abaixa a pressão, dá sonolência e às vezes vômitos, precisando ser feito sob supervisão médica. Colhe-se o sangue para dosar o hormônio basal, se dá o remédio e torna-se a colher nos tempos 60 e 90 minutos para novas dosagens.

Dias depois a mãe vem com os resultados, porém neles não estava escrito hormônio de crescimento e sim cortisol, que é um dos hormônios da suprarrenal. Comentei o fato, explicando que foi dosado o hormônio errado que não tinha nada a ver com o remédio tomado. Então, a mãe voltou ao laboratório, local onde a atendente rasgou o resultado e fez nova folha, porém colocando o nome hormônio de crescimento onde antes havia cortisol, e na frente os mesmos valores do papel anterior. Eram valores superiores a 45 até 60, que não são compatíveis com falta de hormônio de crescimento. A mãe manifestou o desejo de fazer o exame noutro laboratório, pois não se animava a colocar a filha em risco, onde, aparentemente, não sabiam o que estavam fazendo.

A mulher, mal trajada, e falando baixinho, era a humildade em pessoa. Miúda, olhava para mim, em desalento. O dinheiro para o exame tinha sido pago pela prefeitura da cidade dela, e Tereza sabia que não o conseguiria novamente. Era preciso revê-lo. Liguei para o laboratório e pedi para falar com o proprietário. Ele não estava. Expliquei o caso para a atendente, contando que era a médica da criança. Ela fingiu não entender o que se passava. Garantiu que o erro era apenas de digitação e que o exame tinha sido feito corretamente. Ao saber que a mãe queria o dinheiro de volta, falou de forma grosseira que não o devolveria.

O dono do laboratório me telefona, e não aceita que havia sido cometido nenhum erro. Arrogante, falou com empáfia ter se formado no Hospital Albert Einstein, e não na Unimontes, Universidade Estadual e Montes Claros, como se fosse demérito profissional ter-se formado nela. Retruquei que ele poderia até ter se formado em São Paulo, mas estava muito mal assessorado. Falei também que a atendente era mal-educada e o laboratório tinha destruído as provas do erro, tentando escamotear os fatos. Ele não gostou, ficou bravo, e falava exaltado, bem no momento em que a mãe entrou no recinto. Soube disso depois. Diante da minha recusa em aceitar aquela historinha mal contada, prometeu entregar o dinheiro. Menos mal

Ontem revi Tereza, a mãe da menina. Ela tinha refeito o exame de Cássia, mas estava sem o resultado. Tinha vindo trazer sua mãe à consulta e disse ter ficado fortalecida com minha intervenção, na defesa dela e da menina, pois chegou a ouvir a gritaria do bioquímico quando lá chegou. Fez o jogo a meu favor e contra o laboratório no seu ciclo de amizades. Não fico feliz. Pessoas sobem no salto, esmagam gente sem voz e ainda querem ter razão. A cada meia hora nós médicos temos um problema e precisamos encontrar uma solução. Muitas vezes conseguimos. Noutras não.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hip

4 comentários:

  1. Que coisa não, Mara? É muito bom ser colega neste espaço de uma profissional que honra o juramento de Hipócrates. Parabéns, Doutora!

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    1. Procuro acertar, sempre respeitando as pessoas, mas nem sempre consigo. Erro muito também. Não é fácil lidar num ambiente onde a arrogância impera. Obrigada, Marcelo.

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  2. Você não viu nada, Mara!
    Acredito que há excelentes profissionais, mas
    no meio desses crápulas, fica difícil!!!

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    1. Há muita gente que não sabe trabalhar, José Calvino, embora a maioria seja profissional esforçado. Agradecida pela presença.

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