segunda-feira, 29 de abril de 2013


A brevidade de um passo no passeio

* Por Daniel Santos

Manhã cedinho, o velho passa de boina e chinelos pela calçada com o pão debaixo do braço. A cena é tão antiga que me parece perfeita, talvez porque ele ignore essa velocidade do cotidiano que o quer ansioso.

Um pé após outro, cumpre o percurso de volta à casa como quem sabe tirar eternidade da brevidade de cada passo no passeio e vai, assim, fazendo render uma vida que se despede já, mas sem trombetas.

Há uma solenidade insuspeitável nesse vagar em silêncio, um andar imperial, altaneiro, que nunca acelera as passadas, mas pontua o tempo com os calcanhares, pisa nele; não com desprezo, mas como quem macera.

Sim, como quem macera ... uvas, por exemplo. E tira seu sumo e aguarda a fermentação e bebe, enfim, do que domina até experimentar a vertigem. O velho emerge, então, com a conquista de mais um mistério.

Há sabedoria em quem caminha e pensa, em quem encaixa a reflexão no enclave complacente do tempo e faz com que ela germine ali, distendendo a duração e adiando os prazos para mais e mais tarde.

Para fazer render o bom, o velho não se apressa. Boina, chinelos, o pão debaixo do braço, chega em casa e bate a porta na cara do mundo, mas sem arrogância. Lá fora, o dia desatrela, afinal, o tropel do seu gerúndio.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.



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