quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013


Quarta de cinzas

* Por Marco Albertim

O folião cobriu-se de branco dos pés à cabeça. O sol incidindo no tecido lustroso, acentuou a percepção do dia. Inda mais porque, sendo quarta-feira de cinzas, se crer pouco no avanço das horas. E o folião, mesmo com o rosto coberto, pelo modo de andar deu conta de pernas tenras; e por certo um rosto de pele trigueira e amaciada na luz do farol de Olinda. No calor do começo da manhã, ele não cedeu ao peso da mão direita erguida na altura do peito; o punho meio mole, segurando na mão um cartaz onde se lia:

Faltam 364 dias para o carnaval de 2014

Na Rua do Sol, vazia de carros, de blocos, do passeio ruidoso do gentio errante. Subiu a ladeira rumo ao Alto da Sé. Não pisou na esplanada em frente à igreja, temendo a cor cinzenta do abandono, o deserto prenhe de gritos levados pelo vento sudeste. Temeu o oitão da Sé, posto que a caliça da igreja há muito se deixara incrustar tanto por gemidos quanto por estrépitos de prazer. Ele não quis fincar os olhos na parede para não absorver a lamúria vinda de sua cor.

Desceu a ladeira de São Francisco. Distinguiu na quentura do sol, no passeio da Praça do Carmo, meia dúzia de foliões ainda a caráter; como ele, incréus da quarta-feira de cinzas. Apressou os passos, quase convencido de que também eles não estariam com disposição para esperar mais um ano por outro carnaval.
No meio da ladeira, a brancura luminosa de sua fantasia faiscou nos olhos de quem se desse ao trabalho de olhar para cima. Os sinos da Sé bateram rendidos à insanidade das carnes de moços e moças, prostrados depois do festim de sêmens. Da igreja, velhos e velhas, algumas ainda cobertas pelo véu trevoso, estugaram os passos rumo a suas casas. Para evitar o aceno do folião para o próximo festim.

O folião juntou-se aos outros. Quis mostrar o rosto inteiro, para dar provas de seus sinceros votos de um ano tão rápido quanto uma noite de sono. Não deixaram que ele tirasse o bioco da cabeça, do rosto; para não pôr fim à ilusão. A cerveja que ele aceitou, sorveu-a feito uma beberagem mágica.

Não havia música, mas os sons da clarinada ouvida no sábado gordo, tiniram na alma de cada um, zunindo nos ouvidos atentos ao silêncio do vácuo. As velhas, os velhos seguiram a procissão de si próprios, purgando-se de indistintos pecados, só porque urdiram o tato sinistro das mãos dos moços chamuscando sob os shorts das moças.

Um bêbado passou ao lado; nos olhos, no rosto, a marca do gasto deu conta de um cansaço feliz. Viu os moços se abraçando, cantarolando uns restos de música que ele ouvira sem se aproximar deles. O algodão de sua camisa desbotara, amarelecera na sopa do suor com pingos de cerveja. A calça, um brim sem cor definida, fora usada todos os dias, subindo e descendo ladeiras.

O desconforto da quarta-feira juntou-os, embotando as diferenças de classes a partir das roupas. Prosaico, mostrou sua alma feito quem mostra o bolso vazio de dinheiro.
- O carnaval passou e eu não comi ninguém. Tô fodido...

As velhas, os velhos, no vazio da rua, ouviram a voz pastosa do bêbado. Os moços riram. Uma velha se benzeu. Na sua mão trêmula, ela viu o temor a Deus; tirou do bolso da saia comprida, mais parecendo a sacola com que o sacristão recolhe os óbolos, o rosário de contas. Balbuciou uma reza, a tremura nas mãos recolheu-se no rosário.

No Largo do Bonfim, o Bacalhau do Batata despontou primeiro com os clarins zunindo o frevo de Luís Bandeira. Quando a multidão, atrás do porta-bandeira, mostrou suas cabeças no primeiro cruzamento de ruas do largo, ouviu-se o primeiro verso da música com a estridência de uma trovoada sem ameaças de fim de mundo.

A multidão, empurrada pela orquestra e puxada pelo porta-bandeira, desceu a ladeira rumo ao Largo do Carmo. O folião do bioco branco na cabeça, por fim mostrou o rosto trigueiro e amaciado. Os moços promiscuíram o suor dos rostos, no do rosto do folião. O bêbado, mais equilibrado do que antes, pediu-lhes outra lata de cerveja. Quis repetir o refrão – É de fazer chorar/Quando o dia amanhece e eu vejo o frevo acabar -, mas a garganta só balbuciou sons roucos e úmidos da cerveja. Correram todos ao encontro do bloco.

Os velhos e as velhas, espremidos entre o choque iminente, nenhum deles conseguiu se valer de uma nota de canto sacro; toda a reza, a custo retida na fadiga das genuflexões dos domingos santos, evaporou-se no espoucar do frevo, na quentura dos paralelepípedos. A velha de véu preto, rendida, tirou-o da cabeça, segurando-o tenuemente na mão esquerda; na boca semiaberta, um ricto de susto e antegozo. O folião, vendo-a, correu para acudi-la. Segurou-a na mão esquerda. O véu escuro escapou para suas mãos. Logo, ele o pôs na cabeça, crendo-se agora indultado de todo pecadilho. A velha, já com a boca aberta, sentiu as notas do frevo escorregarem nas suas entranhas. Paralisada, ficou segurando o bioco branco do folião.

 *Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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