sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013


Lalão como no céu vai sumindo

Por Urariano Mota


Meu filho ontem me perguntou:
- E Lalão, o senhor não vai escrever nada?

Tão abatido eu estava, que rosnei:
- Não.

Mas uma coisa é falar na mágoa, outra bem diferente é cumprir o que a mágoa rosnou. Por isso tento escrever estas linhas agora. E paro, reflito, volto e percebo que as linhas me vêm cheias de lapsos, sem a mínima serenidade. Quero dizer: Lalão foi enterrado no último domingo. Lalão faleceu no sábado 16 de fevereiro, de morte morrida, ou talvez matada pela incúria do hospital que o atendera. Dias depois de internado por ter sofrido um primeiro infarto, Lalão recebeu alta, porque  estaria “bom”. Para ser morto em casa, deveriam ter acrescentado.   

Então vem a primeira lacuna. No cemitério de Santo Amaro, no domingo, enquanto a Rede Globo entrevistava a viúva, o filho, o pranto do filho, as lágrimas e o choro – ou seja, tudo aquilo que é mais importante para a reportagem –, eu tentava conversar com o coveiro, à margem do espetáculo como Lalão, mas que se chama Amaro.
- O senhor sabe quem foi esse homem que morreu?
- Sei não senhor. Eu só recebo este papel aqui.

E me mostrou um papel onde se escrevia: Esdras Mariano Rodrigues da Silva, bloco G, 208. Nada de Lalão nem da pessoa dele. Então eu olho para o seu Amaro, esse Lalão que não pôde ser, e falo do Lalão que não mais será:  
- Esse homem foi um dos maiores violonistas do Brasil...  eu falo, como um marciano, como um ET esta coisa absurda, “violonista do Brasil”, para me referir a um cadáver apenas, que entrará no bloco G, 208.
- Foi? E seu Amaro se vira para uma senhora, que passa vestida de macacão azul como ele, para perguntar: O café já saiu?

E vai tomar um café, porque o sepultamento marcado para as 10 horas já se prolonga, são 10 e meia e nada, pois os evangélicos começaram a encomendar o morto entre hinos e prantos. É desesperador. Há um oportunismo da fé religiosa, que prega para os desvalidos. E não podemos fazer nada, nada, quando seria preciso expulsá-los, discursar um discurso maior, eloquente, furioso e furibundo neste instante. Nada. A vontade que dá na gente é de beber até cair como um estúpido. E rosnar, e rosnar: - Não! Não! 

Não é forçar a nota, amigos. Mas em momentos como este, da morte de um artista popular, mais cresce na gente uma revolta. Lalão, o genial violonista, um homem bruto e fino, pobre, que não teve o gênio proclamado pela  indústria cultural, pois é, vai para o bloco G, 208. Hinos, palmas e conformação. “O céu está em festa”, berra um conformista. Nada.  

E vem outro lapso. Lembro do que anotei quando vi Lalão pela primeira vez, na casa de Racine, o amigo dos violonistas no Recife. Era também um domingo, mas de carnaval, há cinco anos. E vi. “É um concerto”, comentou uma pianista, que encolhida se alumbrava perto de mim. De fato, era um concerto de um violonista só, violão, bateria e outros instrumentos nas únicas mãos do gênio negro E anotei: sinto-me devedor de um texto sobre esta hora, nesta hora da tarde. O diabo é que as solicitações de assuntos os mais diversos nos vêm de toda a parte. E ficamos entre o dever e o prazer.

Dois anos depois, escrevi sobre aquela tarde: em outro ponto da casa de Racine, em outro lugar depois estava Lalão, a andar impaciente pela grande sala, com um cigarro no bico, com seu físico nada suave de atleta estivador do cais. Eu lhe perguntei, pois eu estava muito inconveniente: “Vai tocar, Lalão?”. E ele: “Se me chamarem, eu vou”. E seus dedos de tarado por cordas agitavam-se. Então fui ao dono da casa e, com a maior das inconveniências, interrompendo-o no solo de violão que ele fazia como poucos, eu lhe murmurei que Lalão queria tocar. “Ah, certo”, ele respondeu. E, com superior educação, acabou o seu número e cedeu o próprio lugar para o estivador mais sublime do Recife. Para quê? Vocês conhecem a lenda do Uirapuru? Se conhecem, podem imaginar: Lalão, quando toca, toda a constelação de violonistas silencia a ouvi-lo. Na verdade, ouvi-los: porque ele dá um concerto de violonistas, sola e se acompanha ao mesmo tempo com uma velocidade e profusão de acordes tamanhos, que só sabemos existir um só violão porque estamos vendo-o. Ou vendo-os.

No ano passado, na última vez em que vi Lalão, porque vê-lo no cemitério não é mais vê-lo, escrevi: é sábado, no Recife, em 13 de outubro de 2012. Estamos no Bar Mamulengo, em um encontro que reúne os melhores violonistas e chorões da cidade. Estamos aqui para uma confraternização com Luís Nassif, jornalista e escritor, que ama e divulga os músicos  pernambucanos lá em São Paulo. E quando digo estamos, e me incluo indevido numa confraria de monstros das cordas, quero dizer: estão Beto do Bandolim, Henrique Annes, Lalão, Racine, Ravel, o próprio Nassif, e mais músicos na plateia, nas mesas em torno, que inibidos não vêm ao pequeno círculo onde se destacam os bambas e microfones.

Então vem dos jovens com a síndrome de down o melhor momento deste sábado 13 no Recife. Uma bela mocinha com os seus olhinhos onde brilha uma irreprimível simpatia, com seus olhinhos puxados que são uma nascente de amor, beija no rosto o violonista Lalão. Ele, mulato escuro, enrubesce na penumbra do momento. Ficou confuso, a sorrir para a mocinha. Ao que ela lhe pede, pois grande é o cerco e cercania das atrações do sentimento: “Toca Olha pro céu meu amor”. Ela pede e sai. Ele resmunga para mim: “olha pro céu meu amor...”. E eu sei o que isso significa. Lalão quer apenas dizer, tocar uma coisa tão boba, para um músico da minha altura e talento, era só o que faltava.    
 E se levanta, pois agora é a sua vez de executar a sua melhor arte. Toca cinco ou seis magníficos choros. A mocinha volta a pedir em voz alta “olha pro céu, meu amor... olha pro céu”. Eu não sei se existe uma hora em que a leveza toca o coração do grande artista. Eu não sei se há um instante em que um afeto simples, singelo, idiota, como resposta  a um beijo assoma e revolve o peito de um virtuose, eu não sei, enfim, se a vaidade da gente cede o passo a uma compreensão total, absoluta, que vem da grande arte. Eu não sei. Lalão toca “Olha pro céu, meu amor”. Ah, a mocinha e outros jovens começam a dançar, numa confraternização, como se fossem a própria tradução da música em corpos e alegria.      
 Ali houve uma contaminação da doença que tem o nome de solidariedade.

Não sei se Lalão viu. Ou se viu, como bom artista, viu e guardou escondido no seu coração. Para ninguém ele disse naquele minuto, pois parecia tocar alheio àquele mar de felicidade, que se espraiava na singela composição, no modo e humildade com que ele a tocava. Ele fez que não viu que estávamos todos felizes ao ver a felicidade dos jovens de Down a dançar. A gente se amarrando pra não cantar em voz bem alta os versos   
 “Olha pro céu, meu amor
Vê como ele está lindo
Olha praquele balão multicor
Como no céu vai sumindo
Foi numa noite, igual a esta
Que tu me deste o teu coração
O céu estava, assim em festa
Pois era noite de São JoãoHavia balões no ar
Xote, baião no salão
E no terreiro
O teu olhar, que incendiou
Meu coração”.
O momento em imagens com a duração de um beijo ficou aqui  http://www.youtube.com/watch?v=0Q8xz5LDrdk&feature=youtu.be
 
Certa vez, o trágico poeta Racine escreveu esta lição: “sem dinheiro, a honra é uma doença”.  É verdade. Igual a tantos artistas que têm no talento a  única honra, Lalão se foi. Como um balão que se incendiou.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

Um comentário:

  1. Li a outra crônica, da outra semana do ano passado, aqui em destaque branco. Ambas emocionaram-me. Então, Lalão foi o responsável pela trilha sonora da outra festa. Lembrei-me de Dilermano Reis, que também fazia um violão se multiplicar, pelo imenso talento, e da letra de música infantil "Bambalão/ senhor capitão/ Espada na cinta/ ginete na mão//. Justíssima homenagem!

    ResponderExcluir