segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Goiabas e queijos

* Por Rubem Alves

Goiabas são objetos oníricos. A palavra “onírico” quer dizer “que faz sonhar”. “Sonhar” é ver o que não existe. Os poetas são sonhadores. A Adélia diz que Deus a castiga de vez em quando. Ela olha para uma pedra e só vê a pedra. Quando isso acontece ela deixa de ser poeta. O Drummond escreveu um poema sobre uma pedra que estava no meio do seu caminho. Mas quem, ao ler o seu poema, vir uma pedra quando ele escreve uma pedra, não viu o que era para ser visto. Porque ele escreveu “pedra” para dizer uma outra coisa. Goiaba é um objeto poético. É um objeto onírico. Olho pra uma goiaba e vejo um universo. Cosmologia de mineiro de roça. Na astronomia de Minas o universo gira em torno de uma goiaba. Embora poucos saibam disso houve um ancestral dos mineiros apelidado Menocchio que a Inquisição assou numa fogueira por ter afirmado uma cosmologia semelhante. Ele achava que a Terra era um queijo com todos os vermes brancos que nele crescem, e se deixar o tempo passar. Goiabas e queijos são parentes: ambos são redondos, ambos são moradia de vermes brancos... E tão parentes são que é uma combinação tipicamente mineira comer queijo com goiabada...

Quando um objeto tem o poder de fazer sonhar é porque ele faz parte da alma da gente. Porque os sonhos são pedaços da alma.

Uma parte da minha alma é feita de goiabas. Goiabas de Minas, é preciso que se diga, em nada parecidas com as goiabas que os japoneses inventaram. As goiabas que os japoneses inventaram não são goiabas, que nascem como Deus as fez, no meio dos pastos. São goiabas científicas.

Admiro a inteligência dos japoneses. Eles são capazes de fazer com que as coisas nascidas das mãos de Deus se ajustem às exigências do mercado. Só não conseguiram até agora fazer com que as galinhas ponham ovos quadrados. Isso seria um grande avanço pois tornaria possível um aproveitamento mais racional das embalagens.

Por que os japoneses inventaram goiabas científicas? Não por que desejassem comer goiabas. Mas porque queriam ganhar dinheiro com as goiabas. Goiaba que é goiaba não se presta prá ganhar dinheiro. Goiaba de verdade é mole, não resiste ao transporte. Deteriora-se rapidamente, não se presta a ser guardada. É habitada por bichos brancos, que dão testemunho do seu gosto delicioso. Comprem uma dessas goiabas de semáforo. Tentem sentir o seu perfume. Não têm. Mordam e sintam como são duras. E vejam se há algum bicho lá dentro. Não tem. Por que? Por que as goiabas são melhores? Não. Porque nem mesmo os bichos gostam delas. Elas não têm gosto.

Eu me lembro, lá em Minas... A gente viajava de jardineira. Abarrotada, cheia de sovacos suados sem desodorante. Foi viajando numa jardineira dessas que o presidente João Baptista de Figueiredo imaginou o aforismo que o consagrou literariamente: “Cheiro de cavalo é melhor que cheiro de gente...” Pode ser que seja um aforismo preconceituoso e anti-democrático. Mas que é verdadeiro, isso lá é. O Paulo, dono da jardineira, recebia o dinheiro das passagens e fazia fiado prá quem não tinha dinheiro. Eu me lembro, uma vez... A jardineira entrou num trecho da estrada de terra (não havia outras) que passava por um enorme goiabal de goiabeiras nativas, carregadas de goiabas amarelas. Ele deu uma ordem para o motorista. O motorista parou a jardineira. E então ouviu-se o seu grito de guerra: “Pessoal, todo mundo catando goiaba...” Todo mundo desceu e foi uma felicidade. Quando foi que isso aconteceu? Bachelard observou que “a lembrança pura não tem data. Tem uma estação. É a estação que constitui a marca fundamental das lembranças. Que sol ou que vento fazia nesse dia memorável?”

Lembro-me da manhã ensolarada, do campo verde, do perfume das goiabas e da alegria dos passageiros, transformados em crianças. Sentido da vida? É catar goiaba madura, bichada, doce, em manhã ensolarada..

Acho que a bandeira de Minas, triângulo vermelho com palavras latinas que poucos sabem o que quer dizer, poderia ser substituída por uma outra que todos entenderiam: uma goiaba e um queijo..

* Escritor, teólogo e educador

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