quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Experiência e memória

* Por Pedro J. Bondaczuk

O escritor Elias Canetti observou que "a humanidade só está indefesa quando não mais possui experiência nem memória". Durante muito tempo, no correr do relativamente curto processo civilizatório do homem, o acervo de técnica, arte e cultura, gerado por indivíduos excepcionais, dotados sobretudo de intuição e clarividência, foi preservado mediante a transmissão oral, de uma geração a outra. No "meio do caminho", muita coisa se perdeu. Hoje, os meios de preservação são cada vez mais eficientes, por causa da linguagem escrita.

Há, é certo, a barreira da diferença idiomática, já que o problema das distâncias foi superado. Esta, todavia, também será, com certeza, vencida, com a universalização de determinados idiomas (em especial o inglês ou, quem sabe, o mandarim) e com a tradução simultânea por computador. Ou, quem sabe, com uma futura uniformização, padronização, unificação da linguagem. O esperanto é uma tentativa nesse sentido. É possível que a língua universal do futuro seja totalmente diferente desta, criada por Miguel Zamenhoff.

A memória é extremamente frágil e registra pouquíssimos fatos que nos digam respeito. Com o tempo, distorce os acontecimentos, fantasia-os, romanceia-os, idealiza-os. Tenho o hábito de registrar em um diário os principais episódios que me envolvem. Relendo essas páginas, com o distanciamento de alguns anos, não me recordo de muitos dos que foram narrados. É como se cada fato citado saísse de minha imaginação, fosse uma criação literária, não passasse de um conto. Caíram no esquecimento e só sei que ocorreram porque estão descritos, com detalhes, expressado a emoção que despertaram, em letra de forma.

Alguns casos, que na ocasião de sua ocorrência não considerava relevantes, a ponto de não os registrar por escrito, não esqueci, por um estranho e inexplicável processo mental. Vêm, subitamente, à lembrança, de repente, atrevidamente, sem pedir licença. Em geral, são coisas corriqueiras, aparentemente fúteis e triviais, mas que o subconsciente não considerou assim. Claro que lhes falta coerência. Brotam inacabados, somente esboçados em rústicos traços, em ligeiros contornos, distorcidos, apagados, sem detalhes. Outros casos, que achava fundamentais em minha vida, que entendia que teriam desdobramentos e que previa que poderiam me conduzir ao sucesso ou ao fracasso, não deixaram o mínimo vestígio ou a mais ligeira marca na memória.

Esses acontecimentos esgotaram a carga emocional no instante da ocorrência. Geraram alegrias, aproveitadas ao máximo, e se apagaram. Provocaram angústias, frustrações e medos e se diluíram. O processo também ocorre em relação à leitura. O romancista norte-americano John Updike confessou: "Tenho muitos livros cheios de anotações pessoais, provando que uma vez os li, embora não me lembre disso". Comigo ocorre o mesmo. Sei que a essência dessas obras permanece em algum ponto nebuloso da minha mente. Mas a memória não logrou reter a mensagem emitida. Daí ter o hábito da periódica releitura, em especial dos textos que considero fundamentais para minha formação cultural, ou seja, os clássicos.

Ítalo Calvino conclui: "Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma série de estilos, e tudo pode ser constantemente embaralhado e reordenado em todos os modos concebíveis". Escrevo para transmitir às outras pessoas as experiências que tive, com a generosidade de alguém disposto a doar algo de pessoal e que lhe é bastante precioso, a indivíduos que não conheço e com as quais provavelmente jamais terei qualquer espécie de contato. O que faço, diariamente, em meus diários e especialmente nas crônicas que escrevo, é um "streaptease" emocional. Desnudo-me perante estranhos, apesar do pudor de me mostrar por inteiro, com minhas escassas virtudes e múltiplos defeitos.

O que se esconde por trás desse processo? Vaidade? Ânsia de conquistar a imortalidade e sobreviver na memória da posteridade? Ingenuidade? Despudoramento? Talvez um pouco de tudo isso e muito mais. Quanto do que escrevo vai permanecer, perdurar, sobreviver à minha extinção física? Jamais saberei! Em um determinado dia, sem qualquer aviso prévio, haverei de partir para algum lugar que nem eu e nem ninguém conhecemos. Talvez para um mundo e uma existência melhores, em outra dimensão. Ou, o que é mais provável, para a decomposição, para a anulação individual, para aquilo que Augusto dos Anjos denominou de "noumenalidade do nada". Daí as frágeis tentativas de registrar a vida como ela é: misteriosa, inconstante, curta, efêmera, mas cheia de fascínio...


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

Um comentário:

  1. Despudoramento, foi ótimo. Adorei. Vejo a sua permanente ânsia de explicar o motivo de escrever tanto. Do meu ponto de vista, Pedro, você escreve por que precisa. A mim, ler seus pensamentos é útil.

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