quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Chuvas

* Por Marco Albertim

O estrépito dos trovões serviu para lembrar-lhes de que não estavam de todo esquecidos. O mau tempo, espreitando-os, enrijou-lhes a guarda, inda que cada um fosse tão vulnerável quanto os limites do Calumbi, sem porteiras e espremidos pelo canavial das usinas. A chuva cobriu o céu fosco da cidade, embaciando as paredes das casas. As casas, já cinzentas sob o sol, perderam todo traço de vida sob o ruído grosso da chuva.

Que os trovões anunciam os relâmpagos, já se sabia desde o começo da ocupação, quando o casario fora construído em volta da redondez barroca da Igreja matriz. Então, nem os bichos se assustaram, acostumados com o rugido das matas e o silêncio imposto pela ranhura do sol, os urdumes da lua, a braveza dos ventos e pelo emboléu das nuvens provocando chuvas.

Os relâmpagos, ora, mesmo às nove horas do dia e com o tempo chamando o breu, chamuscavam luzes nas paredes da Igreja matriz; ali mesmo, onde o piado rouco das corujas imprecava contra santos e viventes. Na capela afim, a do cemitério, sua pouca altura parecia encolher-se ante o vozerio do trovão e a faiscação brilhosa. Entre o cemitério e a matriz, carece dizer, há légua e meia de distância, vincadas de um casario torto, com esquinas sem correspondentes do outro lado da rua, feito horizontes sem linhas divisórias. Na frente da matriz, a rua Direita já coberta pelos paralelepípedos de peito liso, azulado, os riscos dos relâmpagos sorviam a energia da terra invisível; sorviam e ela mesma, a terra coberta, deixava que seus grãos se tisnassem n a quentura dos raios.

O brilho da luz tornando a rua, o seu dorso, num lombo azul, como se a depressão do infinito, cansada de expor a barriga encurvada, virasse de lado, mostrando as costas do azul limpo de nuvens. Ainda que se distinguisse tão só a silhueta do coreto no meio, entre os vendeiros Joventino e Morais, cada um em uma esquina, a rua deixou escorrer para o Beco do Pavão, e de lá para o rio, os montes de lixo que se acumularam nas semanas antes da posse de Abreu de Souza.

O Beco do Pavão já fora tão emplumado quanto a ave, no tempo em que suas estreitas calçadas davam lugar para o trottoir alegre das putas. Empurradas dali sob a pressão das devotas da matriz, seguiram no rumo do rio, para sua margem sebenta e viscosa. A beira do rio, antes ruidosa de grilos e sapos no concerto noturno, ganhou vida com a coreografia estampada das putas. A rua, cunhada na prefeitura, rua Cleto Campelo, não recuperou a homenagem ao tenente que dera a vida para se juntar à Coluna Prestes; manteve o traço maior de se deixar sarapintar pelo floreio luzidio das putas, igual ao dos pavões.

Com os cofres da prefeitura ainda vazios, Abreu de Souza não teve como renovar o contrato com a empresa para a remoção do lixo. O lixo, boa parte dos entulhos, cobriu a superfície do rio. As mulheres, ruidosas por força do ofício, saíram de suas casas. A força das águas fez desconjuntar as telhas, o que havia de inteiro na coberta sobre os caibros finos. As paredes, disformes desde a primeira demão de sapê entre as ripas amarradas às varas tiradas do mangue, deixavam escorrer a lama viscosa de cima a baixo, feito o choro exausto de quem não pode evitar a morte.

Saíram de suas casas, as mulheres; com os pés sujos, usando chinelos chiantes sob o peso da sola miúda, branca, apesar da lama, não hesitaram em chafurdar pés e pernas nos charcos da rua. Os vestidos, a chita florida, acobreada nas noites de lua, no reflexo da luz sobre o tecido, empaparam-se de salpicos grossos. Uma vintena de mulheres com os cabelos estirados, outras com o pixaim luzidio na mistura com os pingos; pareciam vestais falidas.

Atravessaram a ponte. O dorso do rio encheu-lhes os peitos de uma revolta viva, sem o encardimento das vestes. Entraram na primeira rua à esquerda da descida da ponte. O casario de frente para o rio, inda que com paredes erodidas, tinha o prumo mantido no alicerce de cimento. Na frente, a rua fora coberta por pedras de paralelepípedos. Não havia do que se queixar, ali, posto que os banguezeiros conservavam os estoques de açúcar em estrados de madeira, acima cinco metros do piso de baixo.
- Agripina! – gritou Nirlando, banguezeiro de pança cheia – Se não tem onde dormir por causa da chuva, venha pro meu depósito. Na doçura do meu açúcar.
- Te enxerga, velho gordo! Tua pança já tá cheia de mel.

O cortejo seguiu para o centro do Calumbi. As casas do Beco do Pavão, fechadas, abriram as janelas para fazer juízo do estrépito de mulheres abafando o dos trovões.
- Pouca vergonha... – disse a mulher de Gersino, o gráfico cuja casa fora um próspero cabaré.

Na rua Direita, no coreto entre as bodegas de Joventino e Morais, Abreu de Souza terminara de sorver o segundo cálice de vinho, um Porto que Joventino só abria em dias de muita chuva.

No coreto, as mulheres cercaram os três.
- Nós queremos beber vinho também! – disse Agripina.

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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