quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

No cemitério

* Por Marco Albertim

A jactância pessoal torna-se mais caricata quando o sopro do vento traz um cheiro de morte. O caricato, julgando-se superior, finge não sentir a morrinha que escapa de uma fenda ou outra de um sepulcro. Seus gestos são como um deboche da morte. Três horas da tarde o sol fez zunir as campas do pequeno cemitério. A luz, àquela hora, misturou-se à luminosidade própria dos mármores de cada túmulo; uns pretos, outros brancos, outros azulados cor de chumbo. O terno de Alexandrino Moura, com exceção da camisa branca, refletiu-se nas tumbas azuis. O calor cobriu de suor homens e mulheres de braços nus, sem o costume de ir a enterros. Alexandrino Moura, para não se deixar flagrar sem o perf il de magistrado, abanava-se com a palma da mão, pouco se incomodando com o encorpado suor deixando sua testa luzidia. Leovigildo Moura, seu irmão, foi o último a chegar; sem paletó, mas com uma camisa de mangas compridas, com uma listra vermelha na gola, no modo frajola de como se vestira na juventude. A mulher, ainda com rijeza no corpo, conveio que um vestido preto, de uma peça só, daria conta de sua dor pela morte do irmão do marido. Fernão Moura fora comerciante toda a vida, usando camisas de mangas curtas, de fácil empunhadura e um bolso no peito para guardar o maço de cigarros. Os três se puseram do lado de fora do velório, distantes um do outro; cresceram juntos, mas logo cada um seguiu seu rumo, perdendo o costume da prosa em família.

Na sala pequena do velório, a irmã, Virzelda Moura, não pusera luto. Olhando para o defunto, deixou-se ver no modo como se curtia nalguma dor: roendo as unhas, soprando o pó entre os lábios finos, como para se livrar de um perdigoto.

Convém voltar para Alexandrino Moura antes que o sol transtorne sua saliva em baba, e derreta sua caricatura; agouro para isso há de sobra, visto que nos túmulos há defuntos com restos de resistência à roedura dos vermes; e o irmão, mesmo com o rosto coberto por um véu escuro no caixão, não consegue esconder a palidez herdada do câncer na garganta.
- Meus sentimentos... – digo a ele; digo e cruzo os braços para evitar um abraço aziago, vindo de seus trajes carregados de sentenças.
- Foi uma luta. Eu fui quem cuidou dele, até o fim. No hospital me disseram que a extração do tumor seria dez mil reais. Pode ser cinquenta!

Na última palavra, deixou escapar uma saliva meio dura; passou ao lado de meu rosto, mas os resíduos que vieram em seguida instalaram-se no meu queixo. Não me enxuguei, entreguei-me sem resistência, posto que já estava entregue, ao calor.
- Foi uma luta – insistiu.

Na capela um sino tocou. Dois coveiros sentados num banco puseram-se de pé; a fisionomia de cada um era a mais digna do ajuntamento; tinham as mãos calosas do uso de pás e enxadas, revirando a terra; nos narizes distinguia-se uma crosta, por certo de tanto sorver o bodum de ossos ainda úmidos. Nenhum espanto nos olhos miúdos, nenhum esgar de dor fingida nos cantos das bocas. O sino tocou outra vez.

Virzelda Moura roendo as unhas deixou a ponta do dedo médio, quase em carne viva. A dor no dedo juntou-se à dos olhos, e uma lágrima escorregou na pele; quase não se notou a umidade de seus olhos. Ela olhou intrigada para a luz mortiça e única, da sala do velório.
- Passei uma semana sem dormir direito, desde que meu irmão foi levado para o hospital. Me disseram que ele não tinha plano de saúde. Não tem problema, eu disse. Eu pago tudo! – A epopeia de Alexandrino Moura continuou feito um insulto ao silêncio dos mortos.

Teve começo a marcha para o túmulo. Fernão Moura ouviu o irmão chorar as despesas no hospital; ouviu e preferiu entreter-se na conversa com o cunhado, marido de Virzelda Moura; a conversa, bem a seu feitio, dava conta do preço da lancha comprada por ele, guardada no alpendre da casa na praia. A cifra manipulada pelo cunhado, socorrida pelo vento, cruzou com as somas pululando no discurso contábil de Alexandrino Moura.

Em frente à campa, antes de o caixão ser posto na tumba, Virzelda Moura satisfez-se com outra gota de grosso calibre, arrastando-se na pele suada; juntou-a à mancha de sangue na ponta do maior de todos. Alexandrino Moura viu o caixão descer. Inda que no meio do cortejo, não tinha mais interlocutor àquela altura. Disse para si mesmo, como para abrir as próprias entranhas:
- É isso mesmo...

*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.

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