segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O achaque dos gaviões

* Por Daniel Santos

Um a um, eles chegavam à praça por volta das oito da manhã, com passos tímidos, econômicos, sem pressa. Alguns traziam seus canários para o banho de sol, outros vinham dispostos a vencer nas cartas ou na víspora.

Na verdade, reuniam-se toda manhã para passar o tempo e esquecer a negligência da família, a impossibilidade de colocação no mercado, a humilhante aposentadoria. Juntos, pelo menos, gostavam-se, queriam-se.

Ah, e havia ainda os pombos – amigos das estátuas e dos velhos – aos quais eles atiravam milho com alegria infantil, ou quase isso. Mas com o passar do tempo as aves debandaram, devido ao ataque dos gaviões.

Com a destruição das matas, os predadores invadiram a praça em busca de alimentos e ali encontraram presas fáceis, indefesas. Mas, antes do extermínio, evadiram-se para onde pudessem garantir a sobrevivência.

Uma a uma, desapareceram em questão de semanas e, sem a voluta de seus vôos, sem os rasantes acima da multidão, a praça perdeu um pouco da alma acolhedora: algo perturbador abalou sua pacífica atmosfera.

De fato, uma nova população chegava. Garotos descalços, sujos, maltrapilhos, surgiram em bandos nunca se soube de onde; provavelmente, de onde a miséria os acossara, sem qualquer possibilidade de negociação.

Andavam de um lado para o outro com ginga sinistra, como bonecos de borracha de movimentos sincopados, vacilantes. Avançavam e recuavam num ritmo desconcertante como se fossem atacar, e nada.

De início, pelo menos, não. Mas, conforme adonavam-se daquele espaço, entenderam que os passantes lhes deviam uns trocados. Porque alguém, afinal, teria de pagar o enorme prejuízo que eles amargavam.

Dessa maneira ressentida, passaram a encarar as pessoas, seguiam-nas até assustá-las, a ponto de fugirem da praça. A partir daí, foi que começaram a mostrar nos olhos o brilho perverso das suas ameaças.

Os velhos logo entenderam e despediram-se uns dos outros como derrotados que entregam a última fronteira. Foram, então, saindo rapidinho para bem longe dos gaviões que vinham atrás, que vinham atrás ...


* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

Um comentário:

  1. Um embaraçosa crítica social. Os extremos abandonados: a infância e a velhice. Para lá nós vamos, se não morrermos no caminho. Ótimo texto, Daniel!

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