sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Menino comove o velho Beethoven

A estréia oficial de Franz Liszt no seletivo mundo dos concertos se deu quando tinha, somente, de onze para doze anos de idade. A essa altura, já dominava por completo o instrumento de sua predileção, o piano, e executava as peças mais complexas e sofisticadas com perfeição e, sobretudo, com paixão. Não havia crítico, por mais severo que fosse, que lhe fizesse a menor restrição. Liszt aliava, à técnica apuradíssima, um máximo de emoção, que transmitia à platéia e a “contagiava”.

A primeira apresentação para valer – já havia participado de diversos saraus, mas em salões particulares, com público restrito e selecionado – deu-se em abril de 1823, no suntuoso e sofisticado Palácio Aumgarten, construção em estilo barroco situada no distrito de Leopoldstadt, em Viena, que na atualidade é uma das grandes atrações turísticas da capital austríaca. Fez, ali, duas memoráveis apresentações.

Antes da primeira, resolveu que um mestre que já era mito do mundo da música erudita, que admirava, no qual buscava se espelhar e que iria estimar por toda a vida, Ludwig van Beethoven, tinha que estar presente. Para isso, precisava ser convidado. O garoto resolveu que faria o convite pessoalmente, a despeito da fama que o autor da “Nona Sinfonia” já gozava de ser um sujeito esquisito e temperamental (esquisitices atribuídas à sua progressiva surdez). Coisas de gênio. Vencendo a natural timidez, Franz foi à casa do consagrado compositor, cheio de esperança. Decepção! Foi recebido não só com frieza, mas com hostilidade e grosserias.

Ao convite que fez a Beethoven, para que assistisse à sua apresentação de estréia, ouviu um “não” azedo e irritado. O que fazer? Nada, não é mesmo? Embora decepcionado com a recusa do famoso compositor, que não compareceu a esse concerto, Liszt teve performance primorosa. Recebeu os mais rasgados e entusiásticos elogios da crítica. É certo que muitos analistas, mais cautelosos, decidiram esperar novas apresentações do jovem virtuose antes de emitir opinião.

Após o segundo concerto no palácio de Aumgarten, todavia, não houve como não se render às evidências. A performance foi ainda melhor do que a da estréia, que já havia sido irrepreensível. Foi a definitiva consagração de Liszt.

Mas não foram os elogios da crítica, posto que muito bem vindos, que mais satisfizeram o menino prodígio. Não se sabe lá por qual razão, Beethoven, que havia recusado o convite para os dois concertos, decidiu comparecer, sem aviso prévio, à segunda apresentação. Queria ouvir pessoalmente (enquanto isso ainda era possível) o virtuose de quem tanto falavam. Não se sabe o que esperava, mas presume-se que não era nada de bom. Mas Beethoven não se arrependeu de ter ido ao concerto.

Intempestivo, como era, o velho compositor não se conteve ao final da última execução de Liszt. Visivelmente emocionado, “transtornado”, conforme o testemunho posterior dos que presenciaram a cena, quase chorando, o normalmente sisudo gênio deixou de lado seu mau humor e sua hipocondria para protagonizar momento histórico. Saltou para o estrado do teatro e, publicamente, demoradamente, abraçou, comovido, o menino pianista. O salão de concertos quase veio abaixo de entusiasmo, com os gritos e aplausos da platéia, em delírio. Assim, como A. Tenório D’Albuquerque ressaltou, em seu livro “100 Músicos Imortais” (citando a biografia “Liszt Erster Teil”, de Ludwig Nohl) “Beethoven repetia, no mesmo local, o que fizera há 36 anos com Mozart”.

Após conquistar celebridade na Áustria, de repente, Viena tornou-se demasiadamente pequena para o talento do pequeno gênio. Por decisão do pai, que atuava como uma espécie de seu empresário, partiu em turnê, para conquistar as platéias mais sofisticadas e exigentes da Europa. Destaque-se e reitere-se que Liszt, na ocasião, tinha somente doze anos de idade. Colheria ainda, ao longo de vitoriosa, porém estafante carreira, muitos outros triunfos.

Mas a vida de um artista, por mais genial que seja, não se caracteriza apenas por sucessos. Fracassos, frustrações e decepções de toda a sorte têm que ser esperados, pois acontecem – para uns mais e para outros menos, mas praticamente ninguém é poupado. Nessas ocasiões, o que mais a celebridade que cai em desgraça precisa é de amigos, mas leais e sinceros, que se façam presentes nos momentos de aflição e de maior necessidade. O mais comum é os que mais juram amizade se afastarem quando os fracassos ocorrem, deixando o artista sozinho e atarantado com seus problemas e frustrações.

Neste aspecto, porém, Liszt foi felicíssimo. Teve um talento ímpar de conquistar amigos que nunca o abandonaram, quer na alegria (o que, óbvio, é fácil), quer, e principalmente, nas tristezas. Para tanto, contou, decisivamente, a sua atitude em relação ao próximo. Explico.

A vida de Liszt, se bem que cheia de aventuras amorosas sumamente reprováveis pelos critérios morais da época, revelou algo muito positivo em sua conduta, fruto de um caráter reto e elogiável: a lealdade para com os amigos. E, por ser leal, tinha o direito de exigir o mesmo dos outros. Na verdade, nem precisou. Ademais, outra característica mencionada pelos que conviveram com esse gênio é um enorme espírito de gratidão.

Vejam o que ele fez com Beethoven. Se o genial autor das sinfonias (das quais as mais famosas são a “Quinta” e a “Nona”) tem um dos mais belos monumentos em sua memória, e justamente em sua cidade natal, Bonn, isso se deve à lembrança e ao empenho de Franz Liszt, que arrecadou dinheiro para financiar a obra, em concertos e mais concertos para esse fim, mesmo quando sua saúde já estava seriamente abalada. A gratidão, convenhamos, é um sentimento raro. Mas esse gênio da música esbanjava essa virtude. Não há, como se vê, como não gostar de pessoas assim, por mais defeitos que tenham e por maiores que sejam as loucuras que cometam.

Boa leitura.

O Editor.


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Um comentário:

  1. As particularidades desses biografados temperam bem as curiosidades que nos traz. Mesmo romantizadas, prefiro as vidas reais que as inventadas.

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