sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Escrever o que o povo quer

* Por Urariano Mota

É sábado, no Recife, em 13 de outubro deste ano. Estamos no Bar Mamulengo, em um encontro que reúne os melhores violonistas e chorões da cidade. Estamos aqui para uma confraternização com Luís Nassif, jornalista e escritor, que ama e divulga os músicos pernambucanos lá em São Paulo. E quando digo estamos, e me incluo indevido numa confraria de monstros das cordas, quero dizer: estão Beto do Bandolim, Henrique Annes, Lalão, Racine, Ravel, o próprio Nassif, e mais músicos na plateia, nas mesas em torno, que inibidos não vêm ao pequeno círculo onde se destacam os bambas e microfones.

Escrevo o que está acima e não digo tudo. O melhor será escrito a partir deste ponto. Há uma atmosfera no bar Mamulengo - acreditem, não abuso quando escrevo atmosfera ao me referir a um lugar sob calor recifense, em um sábado à tarde -, há uma atmosfera que vai além da decoração do bar, que pendura marionetes populares, os títeres de espetáculo que chamamos de mamulengo, acompanhados de máscaras de carnaval, mais bandeira azul onde se lê “forró de 1 real”. Todos, máscaras, mamulengos, bandeira e demais objetos pendurados em paredes de tijolos sem reboco. O bar, na tardinha, fica um tanto escuro em contraste com a luz que está no azul da tarde lá fora.

Mas dizer atmosfera ainda não é dizer. O parágrafo anterior aponta elementos que compõem o ambiente em uma descrição naturalista. Devo esclarecer, existe uma atmosfera que faz a gente ser bom, franco, verdadeiro, retornar amizades ou fazer amigos pelas revelações mais sérias, como o grande Nassif me faz à mesa, como se falasse nada, e que derrubam as defesas deste pernambucano por essência desconfiado. Ele seria capaz de me dizer, como por outras palavras me disse: “eis porque o meu amor percorre o mundo desta maneira”. E a gente olha para longe, para não se trair, porque está entre a comoção e a mais irrestrita solidariedade. As vozes ao redor ajudam a gente a disfarçar, ninguém é louco de pedir silêncio, porque há sempre um ruído nas manifestações coletivas, mesmo nas mais solenes.

Sabemos que estamos melhores do que nós mesmos. E de onde vem esse fazer melhor a gente? Vem da música, eu diria, vem do choro, acrescento, vem da roda de chorões, que mandam qualquer amargura para as terras estranhas à felicidade. Deve haver na música alguma divindade que amanse as pessoas no que elas têm de mesquinhas feras. Tanto é verdade, que em torno de nós, nas mesas, se encontram muitos portadores da síndrome de down, que vêm de um congresso na cidade. No entanto, entre nós se partiu qualquer dessemelhança: eles nos dirigem piscadas de olhos, beijam-nos nas faces, abraçam-nos e se abraçam, eles se levantam e pedem e sugerem, enquanto suas mães nos falam como a irmãos que todos somos, feios e bonitos em uma só cara, em um só molde, pois a melhor arte nos ilumina a dizer “nossa diferença é nossa humanidade”.

Então vem dos jovens com a síndrome o melhor momento deste sábado 13 no Recife. Uma bela mocinha com os seus olhinhos onde brilha uma irreprimível simpatia, com seus olhinhos puxados que são uma nascente de amor, beija no rosto o violonista Lalão. Ele, mulato escuro, enrubesce na penumbra do momento. Ficou confuso, a sorrir para a mocinha. Ao que ela lhe pede, pois grande é o cerco e cercania das atrações do sentimento: “Toca Olha pro céu meu amor”. Ela pede e sai. Ele resmunga para mim: “olha pro céu meu amor...”. E eu sei o que isso significa. Lalão quer apenas dizer, tocar uma coisa tão boba, para um músico da minha altura e talento, era só o que faltava.

E se levanta, pois agora é a sua vez de executar a sua melhor arte. Toca cinco ou seis magníficos choros. A mocinha volta a pedir em voz alta “olha pro céu, meu amor... olha pro céu”. Eu não sei se existe uma hora em que a leveza toca o coração do grande artista. Eu não sei se há um instante em que um afeto simples, singelo, idiota, como resposta a um beijo assoma e revolve o peito de um virtuose, eu não sei, enfim, se a vaidade da gente cede o passo a uma compreensão total, absoluta, que vem da grande arte. Eu não sei. Lalão toca “Olha pro céu, meu amor”. Ah, a mocinha e outros jovens começam a dançar, numa confraternização, como se fossem a própria tradução da música em corpos e alegria.

Em letra apressadas, sob a atmosfera do bar anoto trêmulo em um caderninho:

“Escrever o que o povo gosta de ler. Tocar o que o povo gosta de ouvir. A mocinha de Down que pediu ‘olha pro céu, meu amor’. E toda juventude que vive à margem dança. Escrever o que o povo gosta. Por quê? Para quem? Se não se desce a sua arte, se se faz do tema, do assunto, uma expressão do artista, que não concede na sua arte... por que não? Por que não escrever o que o público pede? Por que não fazer desse pedido uma arte que é o tema do público, mas a forma é do que a experiência e o talento mandam?”

Escrevi o parágrafo acima no sábado 13. Agora, neste momento, nove dias depois, lembro de João Cabral de Melo Neto que escreveu sob encomenda, a pedidos, Morte e Vida Severina. Lembro de Abelardo da Hora, talvez o maior escultor do Brasil, quando atende ao público nas esculturas, que põe como uma gigantesca flor nas praças do Recife. Lembro dos pintores renascentistas. Dos músicos, dos escritores enfim. Lembro e o meu objetivo que era apenas, conforme se vê no título, discutir as razões e a mudança que o artista faz em atender ao pedido como tema, enquanto o realiza à sua maneira, vai-se embora. Lembro e esqueço, porque me foge a vontade de escrever argumentos mais cerebrais de racionalidade agora.

Isso porque, assim como o beijo que tem uma duração para toda a vida, que vai além do segundo em que os lábios se encontraram, cresce mais para mim a percepção daquele instante. Ali houve uma contaminação da doença que tem o nome de solidariedade. No salão, em todo o bar houve uma onda solidária, a ponto de fazer Lalão chamar Henrique Annes para tocar a seu lado. E ficarem eles mesmos, os dois geniais violonistas, a tocar puros como dois grandes excepcionais. Como se fossem dois meninos grandes que fazem dos acordes olhinhos puxados.

Os jovens especiais dançam. Então as pessoas que pensamos serem diferentes em tudo de nós, “eles veem a vida em tons sombrios, ou de angustiado amarelo, ou de explosivo vermelho, de melancólico azul”, então pessoas assim, para nossa descoberta, veem balões multicoloridos subindo no céu. Talvez delas, mais do que outras, seja esse direito. Elas veem, dançam e se encantam, pois grande é a procura de alegria, e com mais necessidade em quem no seu natural não a possui. Isso deixa a gente também meio bobo, com vontade apenas de repetir: foi numa noite, igual a esta, que tu me deste o teu coração, o céu estava assim em festa, pois era noite de são João...

É claro, a melhor arte não foi feita para trazer felicidade. É claro, parodiando Kant, ela apenas nos torna dignos da felicidade. Mas às vezes, como agora, enquanto dançam as mocinhas com síndrome de Down, a gente é possuído por uma suspensão da falsa racionalidade. Aquelas razões toscas que impedem a gente de ficar simplesmente a sorrir.

Não sei se Lalão viu. Ou se viu, como bom artista, viu e guardou escondido no seu coração. Para ninguém ele disse naquele minuto, pois parecia tocar alheio àquele mar de felicidade, que se espraiava na singela composição, no modo e humildade com que ele a tocava. Ele fez que não viu que estávamos todos felizes ao ver a felicidade dos jovens de Down a dançar. A gente se amarrando pra não cantar em voz bem alta os versos

“Olha pro céu, meu amor
Vê como ele está lindo
Olha praquele balão multicor
Como no céu vai sumindo
Foi numa noite, igual a esta
Que tu me deste o teu coração
O céu estava, assim em festa
Pois era noite de São João

Havia balões no ar
Xote, baião no salão
E no terreiro
O teu olhar, que incendiou
Meu coração”.

O momento em imagens com a duração de um beijo ficou aqui http://www.youtube.com/watch?v=0Q8xz5LDrdk&feature=youtu.be

 
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

Um comentário:

  1. Li noutro site e comentei. A música torna os diferentes iguais. No fundo, nós os humanos somos de tudo um pouco e o direito a alegria pertence a todos nós.

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