quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Os sem-lancha, os sem-lanche e os sem-noção

* Por Fernando Evangelista

- De onde você é?
- De antanho – ela respondeu.
- E onde é isso?
- É um lugar que não existe mais.

Eu tinha uns 10 anos e ela já passava dos 70. Chamava-se Ana Perez e vendia amendoim na esquina da minha rua. Viúva e sem filhos, pobre e digna, atendia a todos nós, crianças, com delicadeza e bom humor. E era apaixonada por livros.“Vendo amendoim para comprar livro”, ela dizia, “o alimento mais nutriente do espírito”. Lia para a gurizada contos e outras histórias curtas – algumas ela mesma inventava. Foi a primeira grande contadora de histórias que conheci na vida.

O tempo corria diferente naquela época. Mesmo com milhares de tarefas escolares, a gente passava horas ouvindo dona Ana e jogando futebol nos terrenos baldios do bairro. Ninguém tinha medo de bandido ou de bala perdida, de sequestros ou de policiais ensandecidos. Ninguém tinha medo de perder aquele campinho de futebol.

Lembrei-me disso ao esbarrar com a matéria “Os sem-lancha da cidade Classe A”, publicada no jornal O Globo de 14 de outubro. Surpreso, percebi que o texto era sobre Florianópolis, cidade onde nasci. O título não era um deboche, apenas um erro de informação.

Um grave erro de informação. De acordo com algumas pesquisas, entre elas a realizada pela Data Popular, divulgada no ano passado, Florianópolis é uma cidade classe C, com 48,5% da população ganhando de três a dez salários mínimos.

Segundo a matéria de O Globo, o grande drama social da capital catarinense é a falta de marinas, o que acarreta uma insatisfação entre a população que gostaria de ter iates, mas não os tem pela ausência de locais adequados para deixá-los.

Na reportagem, a proprietária de uma loja de luxo, de um bairro de luxo, reclama: “Tem muita coisa aqui que parece do interior (...), tem coisa que parece favelinha. Precisávamos ter tudo chique, branco e dourado, poderíamos ter uma Beverly Hills aqui”.

Tudo bem branquinho, sem negros, sem pobres, sem nada que nos lembre que vivemos no Brasil, ainda um dos países mais desiguais do mundo. Tudo branco e dourado, como uma capa de proteção para esconder a pobreza que se propaga e a desesperança que cresce.

Em 2005, estudo coordenado pela professora Maria Inês Sugai revelou que 14% da população de Florianópolis vivia em favelas. A pesquisa mapeou 171 áreas de informalidade e pobreza.

De lá para cá, com o aumento da população e sem uma política habitacional séria, este cenário piorou. Os índices de violência também pioraram – em 10 anos, o número de homicídios na “Ilha da Magia” cresceu 121%.

De tudo isso, uma coincidência me deixou intrigado: o nome da entrevistada, fã de Beverly Hills, do branco e do dourado, é Marraiana Perez, parecido com o nome da vendedora de amendoim, a grande contadora de histórias do Planeta de Antanho.

Já adulto, descobri que antanho e passado são sinônimos. Era o modo de dona Ana nos dizer que vinha de um tempo distante, no qual o valor da pessoa se media pelo caráter e não pelo bolso ou pela aparência. Nativa de Florianópolis, ela se sentia – já naquela época – desterrada de uma cidade que se perdeu.

Outra entrevistada da matéria, a empresária Andrea Druck, contente por viver na Ilha da ostentação, se diz orgulhosa da garotada brasileira, que tem como ídolo Eike Batista. “O problema não é ser rico”, afirmou Andrea, “o problema é ser pobre”.

Eu desconfio, aqui com os meus botões, que o problema não é ser rico ou pobre ou classe média. O problema mesmo, nosso calcanhar de Aquiles, é o preconceito, é a cegueira social, é a falta de cultura de quem teve tudo para se educar, mas não o fez. O problema é ver Florianópolis, tão bonita, nas mãos de uma elite brega, inculta e extremamente ignorante.

Nestas três mulheres – Ana, Andrea e Marraiana – a metáfora de uma cidade que, sem perceber, foi perdendo seus campinhos de futebol e seus contadores de histórias, foi perdendo a simplicidade para ficar mais esnobe e também mais tacanha. Ao mesmo tempo em que se multiplicam lojas chiques e restaurantes caros, prédios altos e carros importados, academias de ginástica e clínicas de cirurgia plástica, vai rareando o encanto e a delicadeza.

Caminho pelo Centro pensando nestas coisas, atento para não tropeçar nos moradores de rua, gente sem-teto e sem-lanche, deitados no chão pobre da cidade rica.

Ao longe, ouço uma música do Gilberto Gil, cantada pelos sambistas locais no vão do Mercado Público: Os lucros são muito grandes, grandes... ie, ie. E ninguém quer abrir mão, não. Mesmo uma pequena parte, já seria a solução. Mas a usura dessa gente, já virou um aleijão. Ôôô, ôô, gente estúpida. Ôôô, ôô, gente hipócrita.

* Fernando Evangelista é jornalista, diretor da Doc Dois Filmes. Cobriu três guerras no Oriente Médio e conflitos na Europa e América do Sul. Mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada toda terça-feira

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