quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O poder e o dever fazer

O homem, como todo animal (e ele, óbvio, também o é), é dotado, pela natureza (inflexível em suas leis), de poderoso mecanismo, tanto para sua proteção pessoal, quanto para a perpetuação da espécie e para a defesa da sua descendência: o instinto, posto, aqui, de forma genérica, já que eles são muitos. Não contasse com esse conjunto de características mecânicas, certamente já estaria há muito extinto. Nesse ponto, creio que todos estão de acordo. Os demais animais, todos, dos unicelulares aos maiores mamíferos, também têm esse mobilizador de ações face algum perigo, induzindo-os a atacar, quando for a melhor estratégia, ou fugir, caso o ataque seja temerário.

Todavia, o homem tem um diferencial com que nenhum outro animal conta: a razão. E esta é tão poderosa que lhe faculta obedecer ou não aos instintos, quando estes se mostrarem inadequados (às vezes são), destrutivos, perversos e perigosos aos semelhantes. Explico melhor. Uma pessoa, com fome, desde que não destituída de consciência em decorrência de algum desarranjo mental, mesmo em casos extremos, dificilmente atacará outra para se abastecer de comida, apossando-se da dos outros. Recorrerá a vários expedientes, menos a este. Poderá, em desespero, até furtá-la. Afinal, seu instinto de sobrevivência norteará suas ações para evitar que morra de inanição. Mas antes de agir dessa forma, ponderará: isto é certo?

Já, digamos, um leão, não agirá dessa forma. Caso esteja faminto, e passe em frente a uma fazenda, repleta de cabeças de gado no pasto, não irá pedir, óbvio, licença ao fazendeiro para abater a rês que lhe sacie a fome. Não irá pensar (supondo que tenha ínfimos resquícios de raciocínio) que é errado matar o animal que não lhe pertence. Não tem o conceito de propriedade, que é, exclusivamente, humano. Não verá no boi outro animal com direito à vida. Verá, isso sim, uma presa. E, sobretudo, comida, e bem ao seu alcance. Seu instinto certamente o moverá à ação, ou seja, a abater e a devorar o bicho mais fraco.

Só o homem, por ser dotado de razão, tem condições de julgar, de direcionar e até de não obedecer os instintos caso conclua que determinada ação que eles lhe ditem lhe trará mais prejuízos do que vantagens. Em vez de atacar quem tiver a comida que precisa, quando estiver com fome, se tiver recursos, tentará comprá-la. Assim, evitará a morte por inanição, mas sem prejudicar ninguém (e a si próprio, já que o outro, certamente, tenderá a reagir a um ataque). Caso não possa comprar, apelará para a sensibilidade do outro para que a compartilhe. Apenas em último caso, provavelmente, tentará tomá-la à força.

É como o jurista Alfredo Cecílio Lopes, ilustre professor de Direito Constitucional, observou num texto que li alhures: “A natureza é muito forte, o instinto é muito forte, eu quero proceder desta maneira, mas minha razão determina que não posso me conduzir assim”. Óbvio que nenhum outro animal, mesmo os que se desconfia contem com um tantinho que seja de “inteligência” (como é o caso, por exemplo, dos golfinhos que desenvolveram, até, uma forma rudimentar de linguagem para se comunicar), tem essa capacidade, posto que em grau ínfimo, de julgamento. É prerrogativa exclusiva do homem.

Ocorre que muitos (e põe muitos nisso!), mesmo tendo a voz da razão a lhes ponderar se determinadas “ordens” dos instintos devem ou não ser atendidas, acabam agindo mal. E fazem-no não uma e nem duas vezes, mas inúmeras. Via de regra, quando cometem erros ou, pior, delitos, tentam tapear a consciência, arranjando pretextos de toda a sorte para se justificar, mesmo que no íntimo estejam conscientes que os argumentos não se sustentam. Exemplo? Os ladrões, que se apossam do que não lhes pertence (de forma violenta ou não) e que, quando questionados, tentam convencer os outros que não fizeram nada de errado ou que agiram em legítima defesa. Não erraram? Nem eles acreditam. E por que agem dessa forma? Essa é a grande questão. Por instinto é que não é. Não se trata do mesmo caso, por exemplo, do leão faminto, que abate uma rês sem consultar o fazendeiro (e, se bobear, devora até ele).

Alfredo Cecílio Lopes observa mais: “É aquele problema que o Eça de Queiroz colocou naquela novela tão bonita, O Mandarim. O mandarim estava lá nos confins da China, e tinha feito um português herdeiro de toda a sua fortuna. Se ele tocasse uma campainha, matava o mandarim e se tornaria seu herdeiro universal. "Apertará a campainha?", dizia Eça de Queiroz no final de sua novela. Moral é isto: eu posso fazer, mas será que devo?”

Não quero ser pessimista, mas a intuição e a observação induzem-me a pensar que, nove entre dez pessoas no mundo, caso estivessem no lugar do personagem português de Eça de Queiroz, tocariam a campainha, determinando a morte do mandarim e entrando de posse da sua fortuna. E mais, engendrariam justificativas, algumas tão sofisticadas que tentariam convencer que o ato que cometeram não somente não foi errado e vil, mas foi até “piedoso”. Provavelmente diriam que o chinês estava cansado de viver e que não tinha coragem de dar cabo da vida. E que, tocando a campainha, lhe proporcionaram o “descanso eterno” de que estava tão precisado, poupando-lhe mil sofrimentos.

De tanto testemunharmos, vermos ou ouvirmos relatos, o dia todo, em todos os dias do ano, por anos e anos a fio, de atos violentos, vis, perversos e absurdos, nos tornamos insensíveis. Depois de certo tempo, passamos a considerá-los até normais, embora a razão grite que não. É como o célebre artista plástico de arte pop, Andy Warhol, declarou, posto que em outro contexto, mas cuja declaração cabe como uma luva neste caso: “Quando você observa um espetáculo arrepiante por muito tempo, o espetáculo cessa de fazer qualquer efeito”. E não cessa? Exagero meu? Exagero de Warhol? E você, o que acha?

Boa leitura.

O Editor.

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2 comentários:

  1. A argumentação foi crescendo a nossa frente e terminou e forma irrefutável. Podemos trazê-la para vários casos atuais, que desfilam incansáveis a nossa frente. Como diz meu filho Fernando: quem começa a dar explicações já está errado.

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